Se para não chatear o “querido líder” de Angola, Luís Montenegro e Marcelo Rebelo de Sousa hoje, António Costa ontem, Passos Coelho anteontem, não têm tempo (nem tomates, nem coluna vertebral) para falar dos angolanos, o melhor mesmo é falarem de Olivença…
Por Orlando Castro
Relembremos. “Não. Por favor, não se reúna com os dirigentes da ‘Frente Patriótica’. Nunca falei com terroristas antes deles se tornarem primeiros-ministros”, escreveu – e sublinhou várias vezes – Margaret Thatcher numa carta do Foreign Office de 25 de Maio de 1979 em que o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Lord Peter Carrington, sugeria um encontro com Robert Mugabe.
A política, essa coisa com vários pesos e outras tantas medidas, que serve quase sempre para milhões terem pouco e poucos terem milhões, é mesmo assim. Enquanto se é bestial (José Sócrates dizia, entre outros, que Muammar Kadafi era um “líder carismático”) a bajulação não tem limites. Quando se passa a besta, todos se unem para dizer o pior e facturar sobre os escombros, sejam materiais ou humanos.
Desde 1975 que o regime português bajula caninamente o regime angolano do MPLA, durante décadas lambeu (pelo menos) as botas a José Eduardo dos Santos, presidente não eleito mas – certamente – um paradigma da democracia e dos direitos humanos.
Em entrevista ao órgão oficial do regime, o Jornal de Angola, e a propósito da sua visita ao país, Pedro Passos Coelho – primeiro-ministro de Portugal- disse:
“As minhas expectativas são muito elevadas. Em primeiro lugar, porque não conheço pessoalmente o Presidente José Eduardo dos Santos e é para mim uma honra conhecê-lo. Mas quero dizer que ele já tinha tido a amabilidade de me convidar para visitar Angola na altura em que fui eleito presidente do PSD, então principal partido da oposição. Por razões que se prenderam com o nosso calendário interno não foi possível efectuar a visita. O Presidente José Eduardo dos Santos teve amabilidade de me convidar novamente, agora como chefe do governo, e é muito importante que nos possamos conhecer pessoalmente”.
Depois desta afirmação na versão primária de apenas Pedro Passos Coelho, certamente tanto portugueses como angolanos ficaram com uma (pelo menos) lágrima no canto do olho. Eduardo dos Santos estava na fase do bestial (para isso bastava estar no poder) e por isso o primeiro-ministro de Portugal disse que “é uma honra conhecê-lo”.
De mão estendida para pedir ajuda (a saudação real é sempre feita com um grande abraço), Passos Coelho enalteceu todas as históricas qualidades do presidente de Angola, seja como estadista ou político de gabarito internacional ou até como (se quiser pagar direitos de autor a José Sócrates) “líder carismático”.
Tempos depois, Eduardo dos Santos (tal como o próprio Passos Coelho) passou a ser chamado, no mínimo, mentiroso. É claro que o facto de, ao contrário dos três presidentes angolanos, serem eleitos não dá legitimidade para continuarem a gozar com a chipala tanto de portugueses como de angolanos. Mas é isso que todos os presidentes e primeiros-ministros portugueses fazem. E fazem muito bem.
Recordo-me de Passos Coelho abordar também, “numa conversa franca e aberta”, as recordações da sua infância “muito feliz” no Cuito, Huambo, Benguela e Luanda na altura – recorde-se – em que Portugal ia do Minho a Timor.
Para não chatear os “queridos líderes” de Angola (Agostinho Neto, Eduardo dos Santos, João Lourenço) nenhum primeiro-ministro ou presidente da República de Portugal tem tempo (nem tomates, nem coluna vertebral) para falar dos 68% de angolanos afectados pela pobreza, ou referir que a taxa de mortalidade infantil é a terceira mais alta do mundo, com 250 mortes por cada 1.000 crianças.
Ninguém os ouvirá recordar que apenas 38% da população angolana tem acesso a água potável e somente 44% dispõe de saneamento básico, ou que apenas um quarto da população angolana tem acesso a serviços de saúde, que, na maior parte dos casos, são de fraca qualidade.
Ninguém os ouvirá recordar que 12% dos hospitais, 11% dos centros de saúde e 85% dos postos de saúde existentes no país apresentam problemas ao nível das instalações, da falta de pessoal e de carência de medicamentos, ou que a taxa de analfabetos é bastante elevada, especialmente entre as mulheres, uma situação agravada pelo grande número de crianças e jovens que todos os anos ficam fora do sistema de ensino, hoje mais de cinco milhões.
Ninguém os ouvirá dizer que 45% das crianças angolanas sofrerem de má nutrição crónica, sendo que uma em cada quatro (25%) morre antes de atingir os cinco anos, ou que a dependência socioeconómica a favores, privilégios e bens é o método utilizado pelo MPLA para amordaçar os angolanos, ou que 80% do Produto Interno Bruto angolano é produzido por estrangeiros; que mais de 90% da riqueza nacional privada é subtraída do erário público e está concentrada em menos de 0,5% de uma população; que 70% das exportações angolanas de petróleo tem origem na sua colónia de Cabinda.
Mas, tal como aconteceu com Muammar Kadafi, quando José Eduardo dos Santos caiu do pedestal a preocupação foi saber quem era o próximo “querido líder”, tendo alguns dos políticos tugas dito cobras e lagartos do homem, como é próprio dos raquíticos seres que comandam Portugal.
Aliás, os portugueses – sobretudo os responsáveis políticos, económicos e os supostos jornalistas – só estão mal informados sobre a realidade angolana porque querem, ou porque têm interesses eventualmente legítimos mas pouco ortodoxos e muito menos humanitários.
De facto, os políticos, os empresários e os (supostos) jornalistas portugueses (há, é claro, para aí duas ou três excepções) fazem um esforço tremendo (bem remunerado) para procurar legitimar o que se passa de mais errado com as autoridades angolanas, as tais que estão no poder desde 1975.
Angola é um dos países mais corruptos do mundo? É sim senhor. É um dos países com piores práticas democráticas? É sim senhor? É um país com enormes assimetrias sociais? É sim senhor. Mas as ordens superiores que o MPLA baixa para Portugal proíbem a abordagem destes temas.
Na altura de Passos Coelho, o seu sipaio Miguel Relvas afirmava que via com “muito bons olhos a participação do capital angolano na economia portuguesa e noutras privatizações que o Estado venha a realizar”.
Se essa participação se fazia (ou continua a fazer-se) com dinheiro de origem duvidosa, ou à custa de metodologias pouco transparentes, não interessa. O importante é que se faça. O resto ver-se-á na altura em que, provavelmente outros, terão de fechar a porta.
Questionado pelo jornal Público sobre se iria abordar o tema da transparência em Angola à luz das mudanças internacionais, o então primeiro-ministro Passos Coelho respondeu através do seu gabinete: “A visita servirá para fazer o ponto de situação sobre os principais aspectos das relações políticas e económicas entre os dois países.”
Portugal, tal como a restante comunidade internacional, sabe que é mais fácil, muito mais fácil, negociar com ditaduras do que com democracias. É mais fácil negociar com uma seita (partido) que está há 49 anos do que com alguém que possa ter de abandonar o cargo pela escolha do povo.
Pedro Passos Coelho (o “africanista de Massamá”) estava, na altura, mais interessado em facturar sobre o facto de o “querido líder” de Angola ser bestial, esperando que quando ele passar – como todos os ditadores – a besta, não tenha de prestar contas. E não prestou.
“A solidez dos laços que nos unem e a convergência de posições em relação a muitos dos desafios centrais do nosso tempo, permitem-nos encarar o futuro com redobrada confiança e ambição”, escreveu em 2009, Aníbal Cavaco Silva, numa mensagem enviada ao democrata dono de Angola e que certamente é repetida pelo menos uma vez por ano.