As Nações Unidas, grupos de direitos humanos e o Governo dos Estados Unidos condenaram o uso de força letal pelas forças de segurança contra manifestantes. Para se manifestarem desta forma as vítimas não serão, com certeza, negros. Não é, portanto, o caso das dezenas de mortos em Cafunfo (Angola).
De facto a organização não-governamental (ONG) de direitos humanos Human Rights Watch (HRW) denunciou que as forças de segurança birmanesas “parecem estar a tentar cortar as pernas do movimento contra o golpe militar por meio de violência pura e gratuita”. Pois! Trata-se de Myanmar, onde vivem cidadãos quase de primeira, com excepção dos muçulmanos rohingyas, que são das minorias mais perseguidas no mundo e, por isso, cidadãos de quinta categoria.
Richard Weir, investigador de Crise e Conflito da HRW (ONG que, diga-se, sabe onde fica Angola e critica as constantes violações dos direitos humanos), enfatizou que “o uso de força letal contra manifestantes que estavam a resgatar outros mostra quão pouco as forças de segurança temem ser julgadas pelas suas acções”.
Por sua vez, a organização Fortify Rights exigiu que a junta militar, que fez um golpe em 1 de Fevereiro, “ponha fim imediatamente aos ataques mortais em todo o país contra manifestantes não violentos e devolva o poder ao Governo eleito”.
Na mesma linha, a Associação de Parlamentares para os Direitos Humanos (APHR) da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) expressou a sua rejeição à violência praticada pelas forças de segurança birmanesas, que descreveu como “repugnante”.
“Quando é que o exército vai parar? Está a tentar matar ou prender 80% do país que votou em Novembro para expulsá-lo da política de Myanmar”, questionou Charles Santiago, presidente do APHR e parlamentar da Malásia.
As acções das forças de segurança também receberam a desaprovação de Tom Andrews, relator de direitos humanos da ONU, que pediu ao Conselho de Segurança para ver as imagens da “violência chocante desencadeada contra manifestantes pacíficos” antes da reunião por teleconferência do Conselho, na sexta-feira, que tratará do assunto.
No mês passado, o Conselho de Segurança já tratou da crise, mas não condenou o golpe devido à oposição da Rússia e da China, que têm poder de veto, portanto, por enquanto parece improvável que o órgão tome medidas contra os militares.
Os Estados Unidos da América também reagiram à violência policial, por meio do porta-voz do secretário de Estado, Ned Price, que disse estar “chocado ao ver a horrível violência perpetrada contra a população de Myanmar devido aos seus apelos pacíficos pela restauração do Governo civil”.
A enviada especial da ONU, Christine Schraner Burgener, estimou que pelo menos 38 pessoas, incluindo dois menores, tenham morrido na quarta-feira em protestos pacíficos contra a junta militar, violentamente reprimida pelas forças de segurança.
Cerca de 60 manifestantes morreram desde o golpe militar de 1 de Fevereiro, que deteve parte do Governo, incluindo a líder de facto Aung San Suu Kyi e o Presidente do país.
Os manifestantes exigem que o exército, que governou o país com punho de ferro continuamente entre 1962 e 2011, permita o retorno à democracia e reconheça o resultado das eleições de Novembro passado, que foram vencidas pela Liga Nacional para a Democracia (LND), partido da líder Aung San Suu Kyi.
A memória (quando existe) é para ser usada
Em 14 de Setembro de 2017, o Governo português (tal como os anteriores) continuava a ser forte com os fracos e fraco, muito fraquinho, com os fortes. Nesse dia deu mais uma prova disso ao manifestar “séria preocupação” com a “escalada de violência” em Myanmar, num comunicado em que nunca refere o povo Rohingya, sobre o qual – segundo a ONU – está a ser exercida a violência.
“O Governo português segue com séria preocupação a recente escalada de violência registada no Estado de Arracão, em Myanmar, assim como a nova vaga de refugiados por ela ocasionada, bem como a escassa informação sobre a situação no terreno que resulta da saída das organizações humanitárias que ali operam, por razões de segurança”, salientava o comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE).
Lisboa apelava “ao fim imediato da violência”, esperando “que as autoridades birmanesas possam rapidamente garantir as condições para o restabelecimento do acesso humanitário, assegurando igualmente a protecção da população civil inocente”.
O Parlamento Europeu instou também nesse dia a Birmânia a “parar imediatamente” a violência contra os Rohingya, numa altura em que 400 mil pessoas daquela minoria já fugiram para o vizinho Bangladesh.
O Conselho de Segurança da ONU pediu “medidas imediatas” para acabar com a violência sobre os Rohingyas na Birmânia. Sobre o mesmo assunto, o secretário-geral da ONU, António Guterres, considerou que os “crimes contra a humanidade” que sofrem os Rohingyas podiam ser considerados limpeza étnica.
O comunicado divulgado pelo MNE português não faz qualquer referência ao povo Rohingya, optando por considerar que “Portugal apoia a transição democrática em curso na Birmânia, assim como o processo de paz e reconciliação conduzido pelo Governo birmanês”.
Lisboa também “apela à rápida implementação das recomendações emitidas pela Comissão Consultiva para o Estado de Arracão presidida por Kofi Annan, enquanto ponto de partida para a unidade e estabilidade do país no longo termo”.
Em Agosto de 2017, o ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan, apresentou ao Governo birmanês o relatório com recomendações para acabar com a violência em Rakhine e promover o desenvolvimento da região.
No relatório da comissão de Kofi Annan — constituída a pedido do Governo birmanês — também não se refere ao povo Rohingya, referindo que “a pedido do Conselheiro de Estado [Aung San Suu Kyi] no texto será utilizado a expressão comunidade muçulmana em Rhakine (Arracão)”. A comissão Annan também não usa o termo “Bengali”, a forma como o Governo birmanês se refere àquele povo, porque os considera refugiados do Bangladesh.
Segundo a ONU, cerca de 400.000 Rohingyas refugiaram-se no Bangladesh desde finais de Agosto de 2017 para fugir à repressão do exército birmanês, que lançou uma operação militar no oeste do país após uma série de ataques da rebelião Rohingya.
As autoridades de Myanmar, de maioria budista, não reconhecem a cidadania aos Rohingya, cerca de um milhão de pessoas, impondo-lhes múltiplas restrições, incluindo a privação da liberdade de movimentos.
400 mil refugiados versus 20 milhões de pobres
Os muçulmanos Rohingya são das minorias mais perseguidas no mundo. Ao fim de séculos estabelecidos na ex-Birmânia, correm o risco de ser exterminados. Merecem por isso a atenção e a solidariedade de todos.
Não deixa, contudo, de ser hipócrita a “preocupação” de Portugal quando, em português, uma sua ex-colónia exerce uma perseguição feroz ao seu povo, que não se refugia nos países vizinhos mas que é constituída por 20 milhões de pobres.
Falamos, obviamente, de Angola. Por não se tratar da eliminação metódica de um grupo étnico ou religioso, mesmo sendo o país com um dos maiores índices mundial de mortalidade infantil, não se pode, tecnicamente, falar de genocídio. Tal como em Myanmar, Angola também finge realizar eleições livres. E se Angola tem partidos, Myanmar também tem (Partido da União Solidariedade e Desenvolvimento, Liga Nacional pela Democracia e Partido Democrático das Nacionalidades Shan).
Nada disto preocupa o Governo português. Preocupação sim com Myanmar que, como se sabe é um país que diz muito a Portugal. É independente do Reino Unido desde 4 de Janeiro de 1948 e faz fronteira com países relevantes para Lisboa e até mesmo para a CPLP: Bangladesh, Índia, República Popular da China, Laos e Tailândia.
Já Angola… desde que o MPLA some aos 45 anos de poder que já leva aí mais uns 55, tudo ficará na santa paz. Angola é (e continuará ser) uma cleptocracia (regime político corrupto) e os seus dirigentes são uma elite indiferente ao resto da população. Nada de preocupante se comparado com Myanmar, dirá com certeza o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva.
Mesmo pelos padrões dos Estados petrolíferos, Angola é quase risivelmente injusta. Os oligarcas deixam gorjetas de 500 euros nos restaurantes da moda em Lisboa, enquanto cerca de uma em cada seis crianças angolanas morrem antes de terem cinco anos. Nada de preocupante se comparado com Myanmar, dirá com certeza o primeiro-ministro português, António Costa.
A pequena, mas poderosa, cleptocracia do MPLA é aceite como uma parte integrante do sistema ocidental, sendo os expatriados que fazem a economia angolana mexer, desde as consultoras que ajudam a definir a política económica até aos bancos que financiam os negócios do clã dirigente (primeiro Eduardo dos Santos e agora João Lourenço). Nada de preocupante se comparado com Myanmar, dirá com certeza Rui Rio, líder do PSD.
Os oligarcas angolanos habitam a economia do luxo global das escolas públicas britânicas, dos gestores de activos suíços, das lojas Hermès, etc.. A clique dirigente consiste largamente nas poucas famílias de raça mista da capital, que considera que os cerca de 21 milhões de angolanos negros no mato ou musseques são imperfeitamente civilizados, e com pouco desejo para os educar. Nada de preocupante se comparado com Myanmar, dirá com certeza o presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa.
Por trás de cada magnata angolano há uma equipa de gestão maioritariamente portuguesa que não se preocupa com as consequências da sua gestão. Por isso os estrangeiros bombam petróleo, fazem luxuosos vestidos e constroem aeroportos sem sentido no meio do nada. Nada de preocupante se comparado com Myanmar, dirá com certeza o líder do CDS/PP, Francisco Rodrigues dos Santos.
Os membros do clã Eduardo dos Santos fizeram luxuosas viagens à Europa e passeios entre capitais europeias recorrendo a aviões a jacto privados. O dinheiro dos governantes e o dinheiro do Estado é a mesma coisa. Todo ele é roubado ao Povo. Mas como o dinheiro não fala, empilham-no nos bancos da Europa (e não só) e gastam-no como lhes dá na real gana: compram quadros, cirurgias plásticas, casas de praia e empresas. Nada de preocupante se comparado com Myanmar, dirá com certeza Mário Centeno, Governador do Banco de Portugal.
O perfil do cliente de elite angolano em Portugal (antes da pandemia de Covid-19), por exemplo, que representa mais de 40% do mercado de luxo português, revela que se trata sobretudo de homens, empresários do ramo da construção, ex-generais ou com ligações ao governo. Vestem Hugo Boss ou Ermenegildo Zegna. Compram relógios de ouro Patek Phillipe e Rolex. Nada de preocupante, pelo contrário, se comparado com Myanmar, dirá com certeza o presidente da Confederação Empresarial de Portugal, António Saraiva.
Quanto ao Povo angolano, a ementa desta subespécie é fuba podre, peixe podre, panos ruins, 50 angolares e porrada se refilarem. Nada de preocupante, pelo contrário, se comparado com Myanmar, dirão (quase) todos os políticos portugueses, até mesmo o Bloco de Esquerda.
Folha 8 com Lusa