Mihaela Webba, jurista e deputada da UNITA, explica de forma lapidar a situação que Angola vive hoje. Agora. Conta ela que “hoje um cidadão perguntou a minha opinião sobre as recentes prisões. Respondi-lhe que depois de haver julgamento com condenações e devolução do dinheiro de todos nós, darei a minha opinião”.
Por Orlando Castro
Tudo normal até aqui, numa explicação jurídica, social e politicamente correcta. Mas o dedo na ferida (foi mais os dedos todos) surge quando Mihaela Webba diz: “Até lá a minha preocupação continua a ser a falta de água potável, energia eléctrica, saneamento básico, assistência médica e medicamentosa (para todos os angolanos), ensino primário de qualidade para todas as crianças de Angola, alimentação saudável para todos os cidadãos, salário compatível com o custo de vida, para todos os trabalhadores e a institucionalização das Autarquias Locais em todos os municípios de Angola”.
Refere ainda a deputada que, “depois de essas questões básicas tiverem resolução, vou-me preocupar com a falta de emprego, de investimento na agricultura, na falta de acesso à habitação condigna, na falta de acesso ao crédito (desde o crédito habitação, ensino, consumo, etc.). Em todos os momentos será necessário o exercício da fiscalização (amordaçada pelo Tribunal Constitucional mediante o célebre acórdão 319/2013, de 9 de Outubro)”.
E enquanto João Lourenço põe todos os seus anteriores amigos do partido e do governo a ter medo da própria sombra, não lhes vá tocar o mesmo (prisão) que aconteceu agora com José Filomeno dos Santos, a degradante realidade dos angolanos continua a avolumar-se. Todos os craques da nossa e de outras praças que fazem balanços do primeiro ano de mandato de João Lourenço esquecem-se – não vá o Diabo tecê-las – de dizer que até agora o Presidente não mostrou respeito pelos nossos 20 milhões de pobres e pelos 6,9 milhões de angolanos que – segundo a FAO – “não têm acesso mínimo a alimentos”.
O primeiro ano de governação de João Lourenço é simples de caracterizar: Milhões de angolanos passam fome às segundas, quartas e sextas e come qualquer coisa às terças, quintas e sábados. Sendo que aos domingos fazem jejum.
Mas, é também verdade, somam-se os (esperados) êxitos de João Lourenço. Segundo a ONG Mosaiko, mais de dois milhões de crianças em Angola estão fora do sistema de ensino e três em cada quatro crianças não têm registo de nascimento.
Os dados foram avançados hoje pela ONG angolana Mosaiko – Instituto para Cidadania, que, em parceria com a Fundação Fé e Cooperação (FEC), lançaram a campanha “Acesso à Justiça: Um Direito, Várias Conquistas”.
Segundo o Mosaiko, o objectivo da campanha, lançada igualmente em Portugal pela FEC, é consciencializar os cidadãos para as assimetrias existentes no acesso à Justiça em Angola, cujos dados actuais, referiu, “são alarmantes”.
O Mosaiko, que cita os resultados dos estudos que tem realizado desde 2012 neste domínio, adianta que há muitos cidadãos sem registo de nascimento em Angola e que por isso não conseguem provar a sua existência. É claro que o cartão do MPLA substitui o registo de nascimento. Mas… Além disso, há crimes de violência doméstica que não são denunciados por falta de confianças às instituições.
A campanha de sensibilização, com base numa plataforma digital, começa hoje e prolonga-se até Janeiro de 2019.
Numa primeira fase estarão em discussão os direitos fundamentais nos sítios www.mosaiko.org e www.fecongd.org/acesso-a-justica/.
“Estamos a lançar agora a campanha com base em três direitos, nomeadamente o registo civil, direito a uma defesa justa e o direito à educação. Depois, seguir-se-ão outros direitos ligados também à questão do acesso à justiça”, disse à Lusa Deonilde da Graça, porta-voz do Mosaiko.
Para a representante da ONG, ligada há 20 anos à promoção dos direitos humanos em Angola, o acesso à Justiça no país é “bastante preocupante”, pelo que espera que a campanha “Acesso à Justiça: Um Direito, Várias Conquistas” possa ajudar a inverter a actual situação.
“O não ter bilhete de identidade nas províncias onde realizamos os estudos significava não ser reconhecido como cidadão e, por conta disso, não poder ter acesso a outros direitos, como a Saúde ou Educação”, disse.
“São muitas dificuldades, com pessoas a gastarem tudo o que têm para poderem ter acesso ao bilhete de identidade, sobretudo fora dos grandes centros urbanos”, adiantou.
A campanha surge no âmbito do projecto “Promoção dos Direitos Humanos em Angola – Fase II”, implementado pelo Mosaiko em parceria com a FEC e com apoio da Organização de Bispos Católicos Alemães para a Cooperação e Desenvolvimento (MISEREOR) e do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, onde foram desenvolvidas várias acções de acesso à Justiça.
Crianças, farelo e cães
Num ano de governação, João Lourenço está a enxovalhar desde logo 45% das crianças angolanas que sofrem de má nutrição crónica, gozando com a chipala faminta de 25% delas (uma em cada quatro) que morrem antes de atingir os cinco anos de idade, bem como com as que são geradas com fome, nascem com fome e morrem pouco depois… com fome.
Angola é, aliás, o país lusófono com a maior taxa estimada de mortalidade de menores de cinco anos e aquele em que é menor a taxa de redução anual. É certamente um motivo de orgulho para o regime e para o seu presidente, ou não?
João Lourenço bem diz, tal como dizia José Eduardo dos Santos, que “cabe nesta hora reiterar os compromissos em relação à criança já assumidos pelo nosso Governo, em colaboração com o Sistema das Nações Unidas e com outros parceiros sociais, no sentido de lhe garantir uma maior esperança de vida ao nascer”.
Como se não bastasse às crianças (às que não são da casta dos dirigentes) passarem pelo que passam, ainda têm de suportar um novo presidente que, pelo menos até agora, finge estar preocupado mas que, de facto, nada faz para resolver as suas carências, muitas delas maiores do que as que se verificavam no tempo colonial.
João Lourenço tem, aliás, a lata de dizer que essa garantia, para além do registo de nascimento e da educação na primeira infância, envolve também a segurança alimentar nutricional, os cuidados médicos primários, a prevenção e o combate contra a violência, a criação de espaços lúdicos, a protecção social, o respeito pelos seus direitos e o reforço das competências familiares.
“Julgamos que deste modo estaremos a criar as condições para que as nossas crianças cresçam saudáveis e tenham desde muito cedo à sua disposição tudo o que merecem, pois são elas que constituem o futuro e que vão prosseguir os nossos actuais esforços para transformar Angola num país próspero, moderno e democrático, onde o bem-estar de cada um se reflicta no bem-estar geral”, realçou (em 2011) o então “querido líder”. Certamente que João Lourenço subscreve.
Na verdade, quem melhor reflectiu a situação angolana foi Kundi Paihama, ilustre alto dignitário do regime e empresário milionário (agora caído em desgraça), quando disse: “durmo bem, como bem e o que restar no meu prato dou aos meus cães e não aos pobres”.
Esta é, aliás, a filosofia basilar do MPLA. O que sobra não vai para os pobres, vai para os coitados dos cães. E por que não vai para os pobres?, perguntam vocês, nós também, tal como os milhões que todos os dias passam fome. Não vai porque não há pobres em Angola. E se não há pobres, mas há cães…
Kundi Paihama, dando voz ao sentimento típico do MPLA explicou: “Eu semanalmente mando um avião para as minhas fazendas buscar duas cabeças de gado; uma para mim e filhos e outra para os cães”.
Quanto aos angolanos, aos outros angolanos, citando de novo Kundi Paihama, que comam farelo porque “os porcos também comem e não morrem”.
Embora seja um exercício suicida, importa aos vivos não se calarem, continuando a denunciar as injustiças, para que Angola possa um dia ser diferente, ser de todos os angolanos.
“O Povo sofre e passa fome. Os países valem pelas pessoas e não pelos diamantes, petróleo e outras riquezas”, disse – nunca nos cansaremos de o citar – Frei João Domingos. Recorda-se Senhor Presidente João Lourenço?
Mas, como dizia o camarada Eduardo dos Santos e diz o camarada João Lourenço, a luta continua. Tem de continuar. Aqui estamos, aqui estaremos. De pé perante os homens (por muito armados que estejam), eventualmente de joelhos perante Deus.