Pensar que o pobre povo angolano ascendeu ao patamar de cidadão respeitado continua a ser um sonho lindo. Os atentados à sua dignidade e aos seus direitos são moeda corrente desde a Dipanda até hoje.
Por William Tonet
Nesse passar do tempo, enxertaram-se no tecido social e no ruir da economia nacional, ao longo do consulado do regime JES/MPLA de um pouco menos de 43 anos, inúmeras violações dos direitos humanos consagrados como crimes pela Constituição da República de Angola e inconcebíveis em democracia.
Os obreiros dessa humilhante empreitada sempre foram os principais dirigentes políticos do nosso país, a começar pelos dois presidentes da República, Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos que, ao longo de quatro décadas, deitados à sombra de uma tirada de puríssima retórica partidária, «O mais importante é resolver os problemas do povo», nunca resolveram absolutamente nada, pelo contrário, agravaram-nos. Mas, na caminhada maléfica e opressora, contra os povos, contaram sempre, com “intelectuais – batuqueiros”, que os colocaram nos píncaros, como figuras divinas.
E o actual ministro da Comunicação Social, quão fértil memória, sabe-o de carteirinha, desde 1977-79, quando ao partir Agostinho Neto, transitaria a idolatria ao novo inquilino, José Eduardo dos Santos.
Hoje, Agosto de 2017, houve eleições gerais e foi nomeado pela CNE (Comissão Nacional Eleitoral), quando deveria ter sido, transparentemente, eleito para a Presidência da República o “camarada” apadrinhado por JES, João Gonçalves Lourenço (JLo). Isso por a Constituição não permitir o cajado presidencial a cidadão diferente do MPLA.
Não se pode negar, que depois de João Lourenço ter tomado o poder se acendeu uma luzinha no fim do túnel da estratégia já de longa data repudiada política Jesiana, assumindo levar a cabo uma inabalável batalha contra a corrupção. De per si, exonerou os filhos do “padrinho-político”, que exerciam funções públicas e alguns poucos dirigentes de classe ocorra, mas não levou ninguém à barra dos tribunais, acusados de desvio de fundos, peculato e assédio financeiro.
Mas, para coroar o regabofe maléfico é preciso, em cada virada de página, o ensurdecedor ribombar de uma selectiva mídia e capitães partidocratas transfigurados.
No actual contexto, encontra-se um personagem fora de série, no que toca ao nível intelectual, João Melo, actual ministro da Comunicação Social, escritor, jornalista, empresário, deputado, antigo director-geral da Angola Press – Angop, a agência de notícias nacional, do Correio da Semana e membro do MPLA.
Recentemente, esse respeitável senhor escreveu um artigo de opinião no Jornal de Angola, intitulado “Mudança, sim, revolução, não”, no qual, fundamentado numa retórica eminentemente partidária, confeccionou uma espécie de salada mal mexida de considerações sobre o seu posicionamento no quadro da actual conjuntura política.
De facto, João Melo veio a público agora, depois das eleições, após ter agido do mesmo modo no decorrer da campanha eleitoral, para colocar o seu partido nos píncaros e tentar convencer os eleitores de que não existe alternativa. Caso o MPLA seja posto fora do poder Angola será um caos, é preciso mudar, certo, mas a única mudança possível é dentro do partido.
A verdade é que o MPLA está há quase 43 anos no poder e nunca quis ou nunca conseguiu protagonizar mudanças políticas, sociais e económicas indispensáveis, como argumentou a justo título Paulo Zau: «São décadas de promessas por cumprir, a que se juntam as da última campanha eleitoral que fizeram com que o país chegasse ao nível de degradação actual. O mal vem de longe, do tempo em que o partido reduziu a cidadania à militância partidária, promovendo-se a mediocridade em detrimento da competência (…) Angola não é uma coutada do MPLA, pelo que ter um governo inclusivo – como sugere a oposição – não implica necessariamente que se tenha de contratar quadros das fileiras de outros partidos, mas sim da sociedade no seu todo. A inclusão também não deve implicar a militância partidária, como acontece hoje com o MPLA (um simples director de uma pequena escola primária tem de ter cartão partidário)».
Por outro lado, repetimos, o também deputado do MPLA reconheceu o que o seu partido sempre proclamou com veemência, ou seja, considerou que uma mudança de poder político em favor do partido do Galo Negro, poderia ser um desastre calamitoso e Angola entraria numa situação de caos total. Mas a inflação, a pobreza, a miséria extrema, o desemprego e a corrupção tornam desnecessária outra comparação, por identificado o criminoso maior, fora da algibeira da antiga guerrilha.
Ainda assim, no seu breviário de malefícios causados à pátria pelo Galo Negro, também se encontram as diatribes de sempre, em mais uma imutável, permanente e duradoura referência ao conflito armado.
Na mente do intelectual/escritor/deputado/ministro João Melo não há lugar para contemplações, a guerra civil que se estendeu por mais de 25 anos é da exclusiva responsabilidade da UNITA, as mortes e as destruições de infra-estruturas coloniais e outras é obra sua, todas as traições e assassinatos foram executados por ordem de Savimbi, o roubo de diamantes é coisa dos “maninhos”, a miséria do povo é obra do Galo Negro. De tanto vilipendiar o irmão inimigo, a sua argumentação tresanda a falsidade. E a boa pergunta é: por quê tanta animosidade?
É ou não ministro de uma nova aurora que advoga?
João Melo acaba de atingir o mais alto patamar da sua carreira, claro está que gostaria de manter e alargar o espaço político que lhe foi concedido e, se for possível subir mais um pouco. Para atingir esse objectivo, enquanto arrasa a UNITA vai lançando para o ar outras considerações a afagar a novel estratégia política de JLo, ao mesmo tempo que, de entremeio, ousou meter uma farpa na imagem esfarrapada do ex-presidente José Eduardo dos Santos, ao declarar alto e bom som: «Não tenho saudades da era de governação de JES». Eis o anúncio da ruptura interna: dois MPLA! O do João Lourenço e o dos outros, que terão, cada vez menos acesso a própria mídia partidocrata, estando perto o calvário no deserto, por serem eduardistas.
É grave? É! Por ser grave o cinismo na política, e o actual, mostra aos angolanos, um fenómeno preocupante; se no seio do próprio MPLA, no poder há 42 anos, é assim, então caso a transparência e vontade eleitoral se afirmasse, elegendo outro autor político, seguramente, o país já estaria em guerra.
E é esta visão que aprisiona o país, com a agravante do infantilismo do MPLA e apetência ao poder, cegar-lhe ao ponto de renunciar, a possibilidade de prestar um serviço relevante, ao país, desprendendo-se das amarras dependentes da Presidência da República, para inviabilizar a criação de nova ditadura.
Traduzido em miúdos significa: não gostei das asneiras de JES, logo, são da sua exclusiva lavra e, a actual mudança de política é uma mais-valia para Angola. E mais, eu estou ao lado do presidente, para o ajudar a levar avante o seu corajoso programa de governamental. Pena é ele ter sido atingido por uma monumental perda de memória. Mas já lá voltamos.
Quanto ao presidente João Lourenço, também ele “vítima” de uma tremenda perda de memória, consideramos o seu trajecto no poder até hoje como sendo uma prova de coragem, cujo mérito repousa, pelo essencial, em não ter conseguido abalar, materialmente, alguns dos maiores monopólios de Angola, antes garbosamente anunciado.
Considerando que a tarefa de luta contra a corrupção, não obstante a sua grandeza e delicadeza serem exponenciais e poder se arrastar por longos anos, se analisarmos o que se passou neste breve espaço de tempo, o desempenho de JLo é criticável.
Não vamos aprofundar a pesquisa, apenas passaremos pela rama, e notar que foram tomadas algumas decisões infelizes, sem prejuízo das que primam pelo utopismo ou relegadas para o reino das promessas incumpridas, entre as quais se destacam o retorno de capitais milionários colocados à socapa nos bancos estrangeiros, as centenas de milhares de postos de trabalho para angolanos, sobretudo jovens – simples miragem -, todos os augúrios de melhoria nos sectores da energia, águas e saneamento básico, sem esquecer a Educação e a Saúde.
A este rol, juntam-se alguns “casos”. O mais recente é o do “avião palácio” que levou a Paris a sua pessoa e uma comitiva de luxo, sucedâneo à promulgação da lei sobre o resgate de capital por altos dignitários do Estado no estrangeiro, que fica assim branquinho como neve e ao abrigo da lei, a desvios de fundos do Estado por enquanto impunes, aos 50 mil milhões de dólares da “Burla Tailandesa, aos 500 milhões de Zenú, etc..
No entanto, por mais importante que tudo isto seja para solver a questão da confiança de que o MPLA e o actual governo ainda carecem por motivos óbvios, mais importante ainda foi o famigerado caso da bicefalia que para desgraça nossa se transformará no decorrer do próximo congresso do MPLA em monocefalia, com um plenipotenciário JLo à frente dos destinos da Nação praticamente sozinho.
Neste caso de figura temos duas hipóteses: uma, JLo, desembaraçado da alçada que o MPLA deixará de ter sobre as suas opções políticas, económicas e outras, nomeadamente as legislativas, uma vez que a Assembleia Nacional fica inteiramente controlada, começará por enviar à barra dos tribunais todos os que não obedeçam à lei sobre o capital recentemente promulgada, prioritariamente os bilionários e multimilionários, e prenda sem receio seja quem for que se atreva a roubar o Estado; duas, JLo, abstém-se de impugnar os maiores gatunos do Estado, quase todos ou todos eles dignitários topo de gama do aparelho do Estado e do regime e a mudança será insignificante.
Nesta análise podemos destacar nas entrelinhas dois aspectos importantíssimos que nos levam a acreditar que a segunda hipótese herdada da có(s)mica “Tolerância Zero” fabulada por JES, supracitada, incorporada na tradicional ausência de sanções vigente no nosso país, tem muito mais chances de vingar por duas razões que passamos a expor:
1) Tanto o presidente João Lourenço como o intelectual João Melo, futuramente ao seu serviço, provavelmente de notável qualidade, são dois casos clínicos, perderam a memória. Esqueceram tudo? Não… a perda foi selectiva, só se esqueceram de todos os malefícios resultantes de solitárias decisões e autorizações que só podiam vir da presidência da República.
Hoje, tal como ontem, se permite que trabalhadores nacionais sejam obrigados a aceitar salários que recebem nas modernas fazendas da escravatura a que os seus capatazes dão o nome de empresas; permite-se que os sindicatos corrompidos obedeçam aos empresários e fazendeiros; quando alguns escravos ousam levantar-se contra tais infames condições, logo carregam sobre eles as forças especiais da PIR, com cães, cavalos, tanques, helicópteros e, depois de caçados e torturados, são levados para prisões onde o seu desaparecimento é, esse sim, puro e total, nem sombra mais se lhe vê; deixar que o governo privilegie as empresas estrangeiras e delas se faça sócio; assinar contratos que nunca são conhecidos do domínio público, apesar de publicitar ao mundo que é um país democrático, eleito por uma esmagadora maioria fabricada nos ventres de computadores topo de gama, numas sempre apelidadas eleições livres, justas, democráticas e transparentes, Isto sem esquecer o descarado roubo dos cofres do Estado que se chifram em biliões, repito, biliões de dólares.
2) O segundo aspecto diz respeito a uma velha tradição Bantu de adoração incondicional prestada ao chefe supremo e se estende aos seus mais próximos seguidores, segundo a qual o que mais vale é eles serem postos ao corrente de quem, dentre os súbditos, são os que maior apego lhe consagram. Tal sentimento perpetuou-se ao longo dos séculos e nos dias de hoje, século XXI, consciente ou inconscientemente, tanto JLo como João Melo manifestam respeito por tal norma arcaica. E que vemos nós. Um presidente da República de um país grande e rico como o nosso a nomear a general o ex-presidente, quando o homenageado, pelo que se saiba, apenas pegou em armas para as limpar. Na sua senda vemos o seu homem de confiança a lançar ditirambos a este último. Eles sabem, os cargos da mais alta ou muito alta responsabilidade são cordas bambas.