A (DES)ENGANADA ARTE DE SER CRIANÇA

A fuga à paternidade, a violência doméstica e a acusação de prática de feiticismo, foram apontadas como as principais causas que concorrem na desestruturação familiar. Na verdade, em Angola, ser criança e crescer com a sua família é quase um milagre.

Segundo o sociólogo e docente universitário, Paulo Matuba, em declarações à Angop a propósito do Dia Internacional da Família, a desestruturação familiar é um assunto transversal e que resulta, também, na decadência dos valores morais e cívicos da sociedade e no aumento da criminalidade.

Paulo Matuba exemplificou que o fenómeno meninos de rua ou na rua, que se assiste um pouco por todo o país, é o resultado do desmoronamento de algumas famílias, aumentando, desta forma, o que apelidou de “órfãos de pais vivos”.

“Uma criança abandonada é potencial candidato à criminalidade, porque na medida em que vai crescendo as suas necessidades aumentam. E a única forma de satisfazê-las é recorrendo a acções criminosas”, enfatizou.

“Num estado de total ignorância ou superstição, toda a desgraça é tida como resultado de alguma força oculta. E o elo mais fraco, nesta condição, são sempre as crianças e os idosos, considerados como a camada mais vulnerável”, referiu Paulo Matuba.

QUANTO MAIS POBRES… MAIS FILHOS

Angola, a par da Nigéria, ocupa a quarta posição entre os países com maior taxa de fertilidade a nível mundial, segundo um relatório das Nações Unidas que estima que população angolana tenha 36,7 milhões de pessoas.

O relatório do Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP) incide sobre indicadores demográficos e saúde reprodutiva e sexual em duas centenas de países e regiões, prevendo que a população mundial tenha ultrapassado em 2023 os oito mil milhões de pessoas.

Segundo o mesmo documento, dois terços da população mundial vivem em regiões onde as taxas de fertilidade desceram abaixo do chamado nível de substituição de 2,1 nascimentos por mulher, sendo a média mundial de 2,3.

No entanto esta tendência é contrariada pelos países africanos que estão nos lugares cimeiros da fertilidade, com destaque para o Níger, que encabela a lista com 6,7 nascimentos por mulher.

Seguem-se, com 6,1, a Somália, a República Democrática do Congo e o Chade, empatados em segundo lugar, a República Centro-Africana e o Mali em terceiro, com 5,8 nascimentos por mulher e Angola e Nigéria na quarta posição.

Angola tem também uma elevada percentagem de população jovem, com 45% da população com idades entre 0 e 14 anos (25% a nível mundial), enquanto apenas 3% dos angolanos têm mais de 65 anos (10% na média mundial).

O relatório avalia também a velocidade a que duplica a população, o que no caso de Angola acontecerá a cada 23 anos (76 a nível mundial).

No que diz respeito à saúde sexual e reprodutiva, os indicadores da ONU apontam para uma baixa prevalência do uso de anticoncepcionais em 2023 nas mulheres entre os 15 e 49 anos: 17% face à média mundial de 50%.

No entanto, no que diz respeito às leis e regulamento que garantem o acesso a cuidados de saúde sexual e reprodutiva Angola está em linha com a média mundial (62% e 76%, respectivamente), mas bastante abaixo dos índices de cobertura dos serviços de saúde (39 face a 68%).

Crianças alguma vez conseguirão ser gente?

Pelo menos cinco mil crianças foram vítimas de violência em Angola, de Janeiro a Outubro de 2019, com Luanda a liderar os casos, com a existência de “menores envolvidas na prostituição”. As crianças são gente? Às vezes, vezes a mais, parece que não.

“Os dados que existem não são só de crianças, são de mulheres envolvidas e que no meio dessas senhoras há crianças, há menores. As menores envolvidas na prostituição existem e a situação é preocupante”, afirmou o director geral do Instituto Nacional da Criança (INAC) angolano, Paulo Kalesi.

Sem quantificar, o responsável deu conta que casos de crianças envolvidas na prostituição foram registados no distrito urbano do Zango, município de Viana, em Luanda, afirmando que na globalidade as “estatísticas de violência contra a criança aumentaram”.

Segundo explicou, “só em 2018 havia registo de 4.000 casos, passando em 2019 para 5.000” com Luanda com o maior registo seguida pelas províncias de Benguela, Huíla, Huambo e Cabinda.

Fuga à paternidade, abusos sexuais, queimaduras nos membros superiores ou inferiores, consumo de bebidas alcoólicas e inclusive mortes constam das tipificações de violência contra as crianças em Angola, cenário que preocupa autoridades e sociedade civil.

Segundo Paulo Kalesi, para dar resposta aos casos, o INAC tinha já elaborado um programa denominado Fluxograma de Resposta de Casos de Violência contra a Criança para “uniformizar os procedimentos para poder atender situações concretas que põem em causa o bem-estar da criança”.

“A nível dos municípios já há estruturas com esse fim e é nessa perspectiva que diria que há um acompanhamento permanente, e por isso é que esses casos vêm à tona”, adiantou.

Apenas 25% das crianças angolanas com menos de cinco anos são registadas pelos pais, motivo que levou o Governo do MPLA (em boa verdade desde há 49 anos que Angola só tem governos do MPLA) a lançar uma campanha de incentivo ao registo de nascimento no país. Como se trata de um país pobre (embora tenha o maior número de ricos por metro quadrado), era bom que a comunidade internacional desse mais e mais ajudinhas…

A campanha, denominada “Paternidade Responsável, Eu Apoio“, encabeçada pelo Ministério da Justiça e Direitos Humanos, com o apoio, obviamente financeiro, da União Europeia (UE) e técnico do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) visava fazer frente ao grande número de crianças no país sem registo de nascimento.

No final de 2018, o então titular da pasta da Justiça e Direitos Humanos de Angola, Francisco Queiroz, disse que um estudo realizado com o apoio do Unicef dava conta de que poucos pais compareceram nos postos de registo das maternidades para fazerem o registo de nascimento dos filhos, “deixando as mães numa situação de abandono com os filhos nas mãos“.

“Em consequência disso, muitas mães optam por não registarem os filhos sem a presença do pai, porque é uma questão cultural também, por sentirem que incorrem em desobediência ao parceiro, caso façam o registo sozinhas”, referiu o ministro.

A pesquisa foi realizada em 70 maternidades do país e os dados apontaram que “poderia haver talvez o triplo de registos, se os pais estivessem presentes”, salientou o ministro.

Francisco Queiroz disse que as estatísticas indicavam que, desde a abertura dos postos de registos nas maternidades, a 7 de Julho de 2017, foram registados apenas 128 mil menores, “um número ínfimo para o universo de crianças que nasce todos os anos e para o grande grau de fertilidade que a população apresenta”. “Esperamos com esta campanha influenciar positivamente para uma mudança de atitude, no sentido de os pais respeitarem os direitos dos seus filhos”, disse o governante angolano, apelando à participação de toda a sociedade.

O estudo realizado no âmbito do “Programa Nascer com o Registo” mostrou que a fuga à paternidade é uma das causas do baixo número de crianças registadas.

E as crianças escravas?

Para erradicação do trabalho infantil em Angola os ministérios do Trabalho e da Acção Social fazem o que tem sido o diapasão da governação de João Lourenço e do MPLA: elaboram planos de acção. As acções propriamente ditas ficam em lista de espera. Tem sido assim, reconheça-se, ao longo das últimas décadas.

Assim tivemos um Plano de Acção Nacional (PANETI 2018-2022), que visava a tomada de medidas que facilitam a tarefa dos diferentes agentes na aplicação prática dos direitos da criança.

O PANETI foi apresentado em Luanda durante um fórum sobre o lema “Não ao trabalho infantil: criança protegida segura e saudável” no âmbito do dia Internacional do Combate ao Trabalho Infantil.

O projecto previa aumentar o acesso à educação e programas de formação profissional, apropriados para crianças, assim como mapear as zonas e os tipos de trabalho infantil em todo país.

Ao intervir no encontro, o secretário de Estado do Trabalho e Segurança Social, Jesus Moreira, considerou o trabalho infantil como um fenómeno que deforma a criança, para além de não proporcionar condições para escapar da situação de penúria e privação na vida pessoal, familiar e social.

O responsável apontou ainda a pobreza (chaga que o MPLA ainda não conseguiu debelar nos últimos 49 anos) como uma das principais razões que tem levado as crianças ao trabalho infantil, assim sendo defende o esforço ao combate e a luta contra a pobreza no país.

Prevê-se, assim, que os 20 milhões de pobres passem também a alimentar-se dos planos do governo, eventualmente tendo como conduto mandioca, farelo ou peixe… podre.

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