Hierárquicas são as relações entre as pessoas e as categorias, hierarquia muitas vezes subtil que se insinua na etiqueta e nas cortesias. O rapapé e as mesuras, o salamaleque e as zumbaias traem o acatamento de uma faixa de sociedade à outra. Há, no exagero, misto de respeito e escárnio, humilhação submissa e ironia, que a melhor sedimentação iria substituir pela polidez e urbanidade. (RAYMUNDO FAORO, Machado de Assis: a pirâmide o trapézio).
Por William Tonet
Um país onde a democracia não é um instituto de solenidade, os mais altos cargos públicos, principalmente nas magistraturas judicial e do Ministério Público, podem ser assumidas por pessoas inidóneas ou sem palavra.
Angola, nunca teve, uma nuvem tão carregada de suspeição de práticas ilícitas, tais como extorsão, peculato, nepotismo e corrupção, sob as mais altas cortes dos poderes judiciário e judicial, ante a apetência de juízes e procuradores, vestirem a “toga” dos milhões.
Daí o emergir, no seio de juízes e procuradores de alto escalão, à outrance (excesso) por dinheiro ou bens, proveniente das margens da extorsão ou corrupção.
A sapiência jurídica passou a ser banalizada e a ostentação considerada uma virtude, a tal ponto que ser juiz/empresário, procurador/latifundiário ou magistrado/ladrão, passou a ser um status, que os leva a desfilar garbosa e ostensivamente, nos corredores dos palácios da justiça.
O direito e a justiça, são subjugados nos “autos mentais” desta estirpe de magistrados, que ama mais o dinheiro e as acções, surripiadas na calada da noite ou a luz do dia, através do instituto da extorsão e partilha de bens provenientes de actos ilícitos.
Nesta equação o delinquente e corrupto chegam a ser mais honestos, ao não fingirem o domínio das leis, da honorabilidade e da honestidade… Infelizmente, neste patamar lamacento, que intriga e envergonha os verdadeiros e honestos operadores e amantes de direito, cabe-lhes a resiliência e denúncia, dos “vampiros jurídicos”, que com apoio e cobertura imperial do poder executivo, colocam a Constituição e as leis na pocilga.
E, tanto é assim, que ao indagar e provocar um tema, que deveria ser merecedor de uma acesa e profícua discussão jurídica, o dr. Benja Satula colheu espinhos, sem que os seus emotivos rebatedores tivessem a serenidade e ciência para interpretar, quer as normas desviantes da Lei 22/12 de 14 de Agosto, conjugadas com o vazio da função e do mérito, que um magistrado do Ministério Público deveria ver consagrado na Constituição.
Por esta razão e demais incongruências de dependência da PGR, Benja Satula defende uma modificação da Constituição e da Lei 22/12 para aproximá-las dos pergaminhos republicanos, quanto aos institutos da nomeação e designação.
Carlos Moreira Bastos ex-procurador militar reformado, ao invés de adentrar no âmago da situação, cingiu-se a cega e desviante defesa corporativa, atendo-se apenas a parte da norma: “a actividade dos magistrados do Ministério Público, nos termos da Lei n.º 22/12 de 24 de Novembro (obs: na verdade a lei é de 14 de Agosto) pode ir até aos 70 anos, e assim, caso queira, o magistrado pode requerer a sua jubilação ou a reforma. O senhor Dr. Hélder Pitta Gróz ainda não completou os 70 anos conforme pretende fazer crer, pois ainda lhe faltam três anos,” assevera o magistrado.
No entanto o art.º 146.º da Lei 22/12 de 14 de Agosto conjugam com o n.º 2 do art.º 53.º: “Os magistrados que se encontrem na situação referida no número anterior são convidados a requerer, no prazo de trinta dias ou produzir, por escrito, as observações que tiverem convenientes” e o art.º 56.º, ambos da Lei 7/94.
Como se pode verificar é necessário enquadrar, para higiene intelectual, a discussão, para que se possa enquadrar os actos prévios do PGR, com a sua carta, que pode ser analisada a luz do n.º 4 do art.º 54, se pode ser entendida como “declaração de renúncia à sua condição”, afastada que esteve a cessação de funções, que poderia ser evocada pelo Presidente da República a todo tempo, como preceitua o n.º 4 do art.º 56.º, ambos da Lei 7/94.
Todas estas contradições carecem de uma verdadeira discussão na academia, porquanto o espírito e a letra do artigo 56.º (Cessação de funções) da Lei 7/94 de 29 de Abril, difere do art.º146.º (Cessação de funções) da Lei 22/12 de 14 de Agosto, para se enquadrar o espírito do legislador material.
Na verdade, para um ex procurador militar fica mal, não conjugar o artigo 146.º (Cessação de funções) na íntegra: “1. Os Magistrados do Ministério Público, quando atinjam o limite de 65 anos de idade ou 35 anos de serviço público e for publicado o diploma da sua desvinculação, passam à jubilação e cessam as suas funções. (sublinhado é nosso).
2. A título excepcional e mediante acordo, sempre que razões ponderosas o justifiquem, os Magistrados com a idade referida no número anterior podem permanecer em funções até à idade máxima de 70 anos”.
Aqui está o nó górdio, em relação ao caso do Procurador-Geral da República, que primeiro, não queria ser reconduzido, tendo apresentado, sem coacção moral e física, carta de jubilação, aos 67 anos de idade e 44 anos na magistratura, logo preenche os requisitos do n.º 1. Eventualmente, pode ser discutível se a eficácia do diploma é peremptório unicamente através da publicação do diploma de desvinculação e jubilação, não atendendo ao direito potestativo, manifestado (publicação da carta de Pitta Gróz a dar nota de jubilação), pelo magistrado.
Quanto aos 70 anos de idade, evocado, também, por Moreira Bastos, no n.º 2, não pode apenas imperar a leviandade, porquanto é preciso não olvidar o corpo da letra: “a título excepcional e mediante acordo, sempre que razões ponderosas o justifiquem.
CONCURSO DA PIMPA
Ora, em nenhum momento, quer o Presidente da República, como o Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público evocaram as razões ponderosas que levaram a recondução de Pitta Gróz, como Procurador-Geral da República, com a agravante de ter ficado, ex-aequo (10 pontos), em segundo lugar, sendo a vencedora (Inocência Pinto-11 pontos), relegada, sem fundamentação, pelo Presidente da República, a posição subalterna.
No caso como este, quem pode indagar a validade jurídica dos actos executivos e conduta política do Presidente da República, se todo o sistema judicial se verga ao seu poder?
Nessa perspectiva é urgente e necessária uma revolução constitucional capaz de vingar, neste domínio, a idade mínima do Procurador-Geral da República, que deve ser um civil, os anos de experiência jurídico profissional, entre 5 a 10 anos, a irrepreensível blindagem jurídica.
Para se ser magistrado do Ministério Público, não basta ter licenciatura em direito, mas experiência e domínio das práticas jurídicas, capazes de, no exercício de funções homenagear os pergaminhos da justiça.
A PGR realizou concurso eleitoral, no 24.04.23, para provimento do cargo de Procurador-Geral e Adjunto e, quando não era necessário, publicitarem os resultados, fizeram-no, apresentando da lista tríplice, uma candidata (Inocência Pinto), com 11 e os restantes dois (Hélder Pitta Gróz e Mota Liz), com 10 valores, mas na equação final, tal como nas eleições gerais de Agosto de 2022, quem ganhou perdeu e quem perdeu, ganhou.
Mas, antes, alguns concorrentes, por alegada orientação presidencial teriam sido, inicialmente, impedidos de participar, sendo depois admitidos. Ninguém teve nobreza de justificar esta gincana.
Quando, recentemente, o dr. Benja Satula, do pedestal da sua autoridade jurídica questionou e bem, o não cumprimento da palavra do Procurador-Geral da República, Hélder Pitta Gróz, que se auto demitiu, em carta publicitada e endereçada ao Titular do Poder Executivo, para depois dar o dito por não dito e participar.
Em Angola onde a decorativa e incipiente democracia gatinha ao sabor da partidocracia, do art.º 185.º ao 191.º da Constituição não se nota nada mais que normas sobre os órgãos; Ministério Público e Procuradoria-Geral da República, sem idade mínima para o ingresso, nem limite para jubilação.
O simbolismo da função, que deveria ser mais importante, para a exigência do perfil do titular não tem, sequer uma norma ou linha, pelo que um criminoso poderá, um dia destes, chegar ao mais alto patamar das magistraturas judicial e do Ministério Público.
O actual texto constitucional, para nossa desgraça colectiva, não tem requisitos de idade mínima, nem de notável saber jurídico e reputação ilibada, para provimento do cargo de Procurador-Geral da República, daí o desvario.
Ao não se rebuscar o art.º 179.º da CRA (Juízes), como mola equitativa, fica demonstrada a clara tendência de militarização e subjugação da PGR, ao poder executivo/presidencial, afastando os mesmos cuidados relativos à exclusiva nomeação de juízes, constantes nas alíneas e); f); g); h), do art.º 119.º, que se altera na al.ª i) do art.º 119.º da CRA, em que o PGR é nomeado e exonerado pelo Presidente da República.
Isso significa que para a Constituição, o Procurador-Geral da República não precisa possuir ética, moral, respeito pela palavra dada, notável saber jurídico, tão pouco, reputação ilibada.
E, claro, como tudo depende da geografia mental do Presidente da República, que nomeia e exonera, um dia destes teremos, tal como nos estatutos do MPLA, um Procurador-Geral da República com 18 ou 100 anos de idade.
Não se estranhará se, a exemplo das suspeições que recaem sobre os titulares dos Tribunais de Contas e Supremo, um destes dias, o Presidente da República, sem o cadastro completo, não nomeie um empresário ideológico ou um (ex)delinquente, para as funções de Procurador Geral da República, mandando bugiar a ética administrativa.
O direito e a moral republicana apontam para o facto de não bastar a confiança pessoal e política do Presidente da República, há-de possuir notável saber jurídico e reputação ilibada.
E neste contexto, pouco importa olhar para o futuro sem analisar, com seriedade, os caboucos plantados num passado recente (1979 – altura da institucionalização da PGR), depois do genocídio de 1977, em que Agostinho Neto cunhou impressões digitais nos 80 mil assassinatos.
A Lei n.º 4/79, não se afastou da partidocracia do Estado/partido, de tal monta que a Procuradoria passou a ter prerrogativas de poder judicial, acusando, torturando e prendendo, de forma inquisitorial, todos os que considera-se adversários ou contra revolucionários.
Muitos dos quadros iniciais da PGR eram verdadeiros assassinos, oriundos da DISA (Polícia política de Agostinho Neto), convertidos em procuradores, que implantaram, o sistema inquisitório, onde a rainha das provas é a confissão do agente, arrancada sobre tortura…
Por esta razão, o art.º 4.º, da lei atrás citada, vinga, o que, até aos dias de hoje, nunca se extinguiu; poder supremo do Presidente da República, sobre o órgão (PGR) e o seu titular (HPG).
As várias revogações, transitadas desde a Lei 4/79, à Lei n.º 5/90 de 07 de Abril, Lei da Procuradoria-Geral da República e a Lei n.º 22/12 de 14 de Agosto, emprestaram um amontoado de normas, com mais vírgulas que substância, mantendo a anacrónica perspectiva, agora consignada no n.º 3 do art.º 8.º (Nomeação e mandato) (…) 3. “O Procurador-Geral da República recebe instruções directas do Presidente da República, no âmbito da representação do Estado pela Procuradoria-Geral da República.”
Um Procurador-Geral da República, nesta excessiva dependência ao Presidente, sem cobertura constitucional, não é levado a sério, quanto a imparcialidade, por, muitas vezes, ante a pressão político-ideológica ser tentado a omissões, encobrimentos ou cometimento de crimes, incluindo, lesivos aos mais altos interesses do Estado, para defender interesses umbilicais.
No caso de Carlos Panzo, ex-assessor do Presidente João Lourenço, em processo de recurso de extradição, o Tribunal Constitucional espanhol foi peremptório, na descredibilização da PGR de Angola: “Neste sistema o Procurador-Geral, os vices e os Procuradores gerais adjuntos são nomeados pelo Presidente da República sob proposta do Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público, essa Magistratura do Ministério Público, nos termos do artigo 190 está fortemente vinculada ao Presidente da República: pois é presidido pelo Procurador Geral da República, nomeado pelo Presidente da República 189; o mesmo Presidente da República designa directamente vários membros do Conselho Superior; e os juristas eleitos pela Assembleia Nacional, logicamente também estão estreitamente vinculados ao Presidente da República, tendo em conta que a maioria parlamentar pertence ao partido presidido pelo próprio Presidente da República e a reforçar esta vinculação consta no n.º 3, do art.º 8.º da Lei n.º 22/12, de 14 de Agosto, que dispõe que o Procurador-Geral da República recebe ordens directas do Presidente da República.”
Um Tribunal cujos juízes têm notável saber jurídico e reputação ilibada, não existem dúvidas em considerar que: “A Procuradoria-Geral da República constitui uma unidade orgânica subordinada ao Presidente da República, enquanto Chefe de Estado, e se organiza verticalmente, sob a Direcção do Procurador-Geral da República, que recebe instruções directas e de cumprimento obrigatório do Presidente da República. Em tais circunstâncias é impossível concluir que revista características de um órgão autónomo ou independente. Ao contrário de uma autoridade independente, não submetida às ordens ou instruções externas, em particular do poder executivo, eis que a CRA apresenta um Ministério Público que actua em representação do Estado principalmente no exercício da acção penal”.
Foi por esta dependência que o processo de extradição de Carlos Panzo não prosperou e, hoje, baseado na decisão judicial, ele já circula, livremente, pela Europa, despreocupado, pelo facto de ter caído por terra a possibilidade de ser capturado pela INTERPOL.
Nos últimos 44 anos a PGR não tem conseguido granjear respeitabilidade, avanço civilizacional e institucional considerável, pelo contrário, cava, diariamente, ravinas jurídicas, que a separa dos cidadãos e demais operadores do direito, por, muitas vezes, agir em sentido contrário às Leis e à Constituição.
Mas não devemos perder as esperanças nem baixar a guarda na luta pelas prerrogativas em defesa de uma instituição fundamental para consolidar o carácter legítimo e lícito do Estado angolano, que vai, seguramente, um dia ser refundado.
Uma Procuradoria fraca é um estímulo ao cometimento de crimes e abusos de gestão por parte de agentes políticos e administrativos.
A Procuradoria-Geral da República, numa democracia deve ser a primeira barragem para coibir e conter as ondas do crime organizado e de colarinho branco, que se aloja há 48 anos no poder.
A actuação do Procurador-Geral da República deve ser revestida de nobreza, para servir com isonomia o Direito e à Justiça, na defesa da legalidade constitucional que deve pautar a actuação dos agentes públicos e políticos.
É preciso cultivar a esperança de que, um dia, mais perto do que tarde, a Magistratura Judicial e a do Ministério Público, sejam chefiadas por pessoas de notável saber jurídico e reputação ilibada, impedindo que magistrados ladrões, delinquentes e vira-latas, escondidos pela toga preta, continuem a controlar o peso do martelo da justiça.