O presente texto não visa causar polémica, apenas rememorar a verdadeira história de um local (Santuário da Muxima), cada vez mais emblemático catolicamente. Não foi sempre assim. Custou o pão que o diabo amassou a muitos dos nossos antepassados, por vezes, sob o olhar cúmplice de muitos padres, imbuídos de um nacionalismo extremista.
Por William Tonet
Os anos passam e o tempo trata de sarar muitas feridas, daí ser mister dizer-se a verdade, ainda que seja dura, pois ela e só ela liberta. Hoje, pegando nos instrumentos da Igreja Católica, lendo o Direito Canónico e a Constituição do Vaticano, intrigam-me as razões do clero angolano não exigir mais independência, mais liberdade, menos neocolonização religiosa, tendo suporte jurídico eclesiástico, principalmente agora no consulado do Papa Francisco. Sou católico, amo a igreja, mas amo muito mais a verdade. Por esta razão, sou defensor de que antes de se construir o Santuário da Nossa Senhora da Conceição, também denominado da Muxima, ou em simultâneo, ver erguido uma ACADEMIA OU MUSEU SOBRE A ESCRAVATURA AUTÓCTONE ANGOLANA, para se poder contar a verdadeira história dos nossos antepassados, sem a qual nunca seremos dignos da nossa identidade, fora da visão do mundo ocidental.
A história da Nossa Senhora da Conceição remonta ao século passado, quando as tropas coloniais portuguesas ocuparam a vila da Muxima, em 1589, decidindo construir dois importantes e emblemáticos imóveis; uma fortaleza militar, para defesa e consolidação das posições e uma igreja católica mariana, denominada, Nossa Senhora da Conceição, padroeira dos militares lusos, por acreditarem nos milagres, que os protegia nos combates contra as tropas inimigas (holandeses) e a resistências dos povos autóctones que os religiosos e autoridades coloniais, inclusive, nas homilias, conversas de taberna e escritos, os tratavam pejorativamente de “pretos”; seres inferiores; portadores de espíritos diabólicos.
Na obra Portugal Missionário, publicação comemorativa da Reunião Missionária, efectuada no Colégio Sernache do Bonjardim, em 31 de Julho e 1, 2 e 3 de Agosto de 1928, na pág.ª 28, lê-se o seguinte: “Os portugueses tiveram, como nenhum outro povo, a intuição sublime do valor das Missões, e, por isso mesmo, delas tiraram os primeiros e mais brilhantes frutos. É certo, porém, – e isso nunca é demais frisá-lo – que não se lançaram nessa cruzada por mero cálculo e mesquinhas conveniências. A fé cristã e as Missões foram sempre o elemento preponderante da sua orientação na conquista e na civilização dos povos aborígenes”. E na seguinte afirma: “E a eterna perseguida, a igreja, esquecendo injustiças passadas e sorrindo do pretendido favor, continua serena e firme na sua bendita cruzada de paz e de amor, levando a luz divina do Evangelho aos corações rudes dos africanos”.
E quando se fala da necessidade de evitar a neocolonização religiosa, não significa a recusa da fé Católica mas expurgar maus entendidos e visões de antanho, como esta descaracterizante pérola, na pág.ª 30: “Ninguém o duvide: o factor religioso é indispensável em toda a parte e de um modo especial entre os indígenas africanos, profundamente deístas”.
António Enes, missionário afirmava que “quando fosse possível substituir os padres ou por moralistas, ou por mestres-escola, perder-se-iam na substituição os especiais meios de acção sobre os indígenas de que só dispõe quem lhes fala em nome dos poderes sobrenaturais”.
E Freire de Andrade, também da Associação Missionária, no seu pragmatismo verteu as seguintes palavras: “temos de aceitar os factos, e eles dizem-nos que as Missões religiosas dispõem de meios especiais para com os indígenas”.
Nesta visão realista a obra rememora; “por tal modo a acção missionária portuguesa e católica andou sempre ligada com os interesses da nossa Pátria, nas colónias, que o grande Mouzinho de Albuquerque escreveu este testemunho frisante e claro: para o preto, ser católico é ser português”.
In fine na pág.ª 31 os autores consideram que a religião é a mesma: ela foi sempre o elemento propulsor da civilização, e se outrora pode defrontar-se com os bárbaros e adoçar-lhes os seus costumes, trazendo-os a uma vida melhor, hoje, com os selvagens, continua a sua missão de guia e mestra consumada”.
Nessa lógica, a Igreja era a segunda arma mais importante, na consolidação do império colonial, com a função de através do ópio do crucifixo, moldar a mente dos autóctones à submissão, ao homem branco.
E, para a consumação dessa estratégia, os padres capelões (padres militares, muitos tinham a cruz no peito e a arma debaixo da batina, quando estivessem diante de um autóctone preto) incutiam a ideia dos angolanos terem no corpo, um espírito demoníaco, cuja expulsão se consumava com a aceitação, quer da superioridade do colonizador branco, bem como do baptismo obrigatório, principalmente dos escravos, antes de embarcarem nos navios negreiros, para a América.
Com o decorrer dos anos, principalmente depois de Luanda (incluindo a vila da Muxima) ter sido reconquistada aos holandeses, em 1648 (havia sido ocupada em 1641), a estátua da padroeira foi levada de volta à igreja e na comemoração, foi permitido que os autóctones baptizados e já integrados como assimilados (trabalhando como serventes, com os colonialistas) assistissem, no lado de fora das igreja às homilias e nos comentários estes diziam; Senhora da Muxima, referência não à pessoa física ou espiritual, mas à localidade.
Depois foi-se consolidando a referência para passar a imagem de ser uma padroeira angolana, o que não corresponde a verdade, tanto que apesar da devoção de uma parte dos crentes católicos, a própria CEAST não a considera como tal (padroeira).
Apesar deste paradoxo, a Romaria de Nossa Senhora da Conceição, vulgo da Muxima, é uma festa católica anual ocorrida entre o final de Agosto e três primeiros dias de Setembro, que mescla tradições do catolicismo ocidental romano, com elementos da religiosidade tradicional angolana.