O relatório de actividades do Grupo de Trabalho para Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfico vai ser hoje apreciado na Comissão de Cultura, da Assembleia da República de Portugal, país onde foi aprovado há 10 anos e implementado com carácter obrigatório há quatro.
Por Orlando Castro
Em Angola o MPLA criou e adoptou a sua própria ortografia, com a ajuda dos seus amigos cubanos. E assim temos “sexta básica” e não “cesta básica”, “marimbondo na cumeia” e não na “colmeia”, “Repúbica”, “Silvicltura”, “Ectroténica”, “edífico”, “Ogânicas”, “orgãos”, “Senando”…
Esta realidade, no que a Angola concerne, leva-me a recontar agora uma história verídica que, aliás, o Folha 8 já publicou em 7 de Maio de 2016. Isto porque, sobretudo mas não só, os nossos jovens de hoje escrevem português com os pés… e nem se descalçam.
Já lá vão 45 anos. No então Liceu Norton de Matos, em Nova Lisboa (Huambo), o professor José Fernandes Duarte (que os alunos conheciam mais por “Pele Vermelha” ou “Pelinha”) dava uma daquelas aulas de português que algumas vezes (não eram tantas como isso, desculpem lá!) eram chatas como o Diabo.
A talhe de foice, desse tempo também recordo com gosto e eterna saudade, as professoras Dorinda e Dárida Agualusa.
– Samuel, não te importas de ler em voz alta a tua dissertação?, disse o “Pelinha” com aquele ar doutoral que, contudo, deixava transparecer uma ponta de humor, coisa rara (muita rara) durante as aulas.
A turma ficou em silêncio. Sempre que o Samuel falava, até mesmo fora das aulas, a malta prestava atenção redobrada. Há muito que ele nos habituara às suas avançadas teses sobre quase tudo.
O Samuel, já na altura com uma estatura física – tal como a intelectual – muito acima da média, levanta-se, afina a voz e aí vai disto. O silêncio tomou conta da aula. Todos estavam de olhos postos no Samuel. Muitos de nós até esquecemos o tempo que faltava para o intervalo.
E o Samuel lá esteve mais de meia hora a ler o trabalho que tinha feito. O “Pelinha” alternava um tímido sorriso com a máscara professoral que habitualmente usava. Nós, os colegas, também estávamos atentos. Não pasmados porque, verdade seja dita, do Samuel (ou “Sam”, como carinhosamente o tratávamos) não esperávamos outra coisa.
Finda a leitura, o “Pelinha” disse:
– Samuel, não te importas agora de resumidamente “traduzir “ tudo isso para português?
Foi a gargalhada geral, incluindo o “Sam”.
Tudo porque, mais uma vez, o Samuel nos tinha dado uma lição de… português. De exímio português, tanto falado como escrito. De facto, ele era um dos melhores, talvez o melhor, aluno daquela disciplina. E de tal modo o era que quando queria – como foi o caso – a sua linguagem erudita nos deixava de cara à banda.
Acontece que, pouco tempo depois, Angola entrou em guerra. Fomos uns para cada lado. Meses depois, vi pela última vez o Samuel. Estava fardado (creio que era Capitão das FALA) e de metralhadora na mão.
Mais tarde, anos talvez, disseram-me que o “Sam” tinha morrido em combate.
Porque carga de chuva transformaram o “Sam” num militar?
Porque carga de chuva Angola teve de perder um dos seus mais válidos filhos?
Porque carga de chuva mataram o Samuel Pedro Chivukuvuku?