Comida estragada nos frigoríficos, telemóveis que não tocam porque não têm carga e velas sempre à mão tornaram-se numa rotina nos musseques à volta de Luanda, devido aos prolongados cortes no fornecimento de electricidade da rede pública.
Em causa estão cortes que se arrastam há várias semanas, que o Governo angolano justifica com o aumento do consumo de electricidade e o défice de produção, mas também as obras de reforço de potência na barragem de Cambambe, no Cuanza Norte, que estão a desesperar sobretudo os bairros mais pobres de Luanda, onde não há dinheiro para geradores a gasóleo ou gasolina.
Os musseques, bairros precários onde sobrevivem milhares de famílias, são os locais onde a situação é mais complicada, com queixas de dias consecutivos sem electricidade da rede pública.
Os transtornos vão desde a conservação de alimentos ao simples carregamento dos telemóveis ou ver televisão, como relataram à Lusa moradores do bairro Kalawenda, município do Cazenga, um dos mais populosos de Luanda.
Nzinda Miguel dá conta que apenas depende da energia da rede eléctrica para a conservação da comida no congelador e que com os cortes constantes e prolongados das últimas semanas já perdeu muita (que é sempre pouca) comida.
“A energia aqui é mesmo assim, podemos passar dois ou três dias às escuras, os que têm gerador sofrem menos e nós que não temos gerador, as coisas apodrecem na ‘arca’. Nesses momentos a vela de cera é o nosso recurso para clarear a casa”, conta a moradora.
Para manter os telemóveis carregados e funcionais, Nzinda Miguel tem recorrido à casa de vizinhos com geradores eléctricos. Os restantes, assume, “ficam desligadas do mundo” até ao regresso da electricidade, por algumas horas.
Situação semelhante passa Cristina Lourenço, que lembra os períodos em que ficaram mais de uma semana sem electricidade naquele bairro.
Apesar de possuir em sua casa um gerador, relata que nem sempre tem dinheiro para comprar combustível e as consequências nessa fase, principalmente para com os produtos frescos, “são inevitáveis”.
“São mais gastos, o meu gerador é abastecido com 20 litros de gasolina e trabalhando três a quatro dias consecutivos é prejuízo para mim, porque quando não há dinheiro para abastecê-lo é já uma certeza que toda a comida vai para o lixo porque apodrece no congelador”, desabafou.
Ver a telenovela ou ouvir música são momentos de lazer que também não se dispensam nos musseques, numa altura de noites que chegam a ser de 30 graus centígrados. Sem electricidade, para os moradores do Kalawenda como de outros bairros de Luanda, faltam alternativas: “A solução é mesmo dormir mais cedo e debaixo de um intenso calor”, acrescentou Cristina Lourença.
Catarina Adelino, de 37 anos, explica que para a conservação dos frescos recorre à compra de gelo e para carregar o telemóvel a solução passa por levar o carregador para a empresa.
“Compramos gelo para conservar o peixe, a carne e outros alimentos de forma a não estragar. No meu caso carrego o telemóvel na cidade onde trabalho para me precaver das falhas de energia aqui no bairro”, conta à Lusa.
Sem electricidade e sem iluminação pública, estes moradores afirmam que a situação tem contribuído para “o aumento da criminalidade” no bairro.
O ministro da Energia e Águas, João Baptista Borges, esclareceu este mês, em conferência de imprensa, que os ensaios finais na barragem de Cambambe deverão continuar a provocar, até final de Dezembro, apagões no abastecimento eléctrico aos grandes centros urbanos de Luanda, situação que se arrasta há semanas, agravada pelo aumento do consumo.
Anualmente, só em Luanda, segundo o governante, o consumo de electricidade cresce 23%, mas até agora a potência instalada não aumentou e ronda os 1.500 MegaWatts (MW).
Com as novas barragens e uma central a gás, estima-se que a potência instalada chegue aos 5.000 MW no final de 2017.
Promessas que ficam às… escuras
No início de Setembro ficou a sabe-se que o Estado iria capitalizar a nova empresa pública nacional responsável pela comercialização e distribuição de electricidade com mais de 38 milhões de euros, segundo um despacho presidencial.
De acordo com o documento assinado pelo Presidente José Eduardo dos Santos, de 18 de Agosto, foi autorizado um crédito adicional para a capitalização da Empresa Nacional de Distribuição de Electricidade, criada em Novembro de 2014.
Estabelecia-se ainda que caberá ao Instituto para o Sector Empresarial Público a abertura do crédito necessário, no valor de 5.417.600.000 de kwanzas (38,6 milhões de euros).
O Governo criou há mais de um ano três novas empresas públicas para gerir a área da energia, avaliadas em mais de 9,5 mil milhões de euros, e a extinção de outras duas.
A decisão foi justificada pelo Executivo de José Eduardo dos Santos com a “estratégia de desenvolvimento do sector eléctrico” do país e pela necessidade de “saneamento financeiro das empresas do sector”.
A nova estrutura organizativa do sector, também no âmbito do desenvolvimento programado até 2025, envolve a criação de unidades de negócio dedicadas expressamente à Produção, Transporte e Distribuição de energia.
O diploma com estas medidas entrou em vigor a 20 de Novembro e aprovou a extinção das empresas públicas ENE (Empresa Nacional de Electricidade) e EDEL (Empresa de Distribuição de Electricidade).
Os activos destas duas empresas – e ainda do Gabinete de Aproveitamento do Médio Kwanza -, bem como responsabilidades e trabalhadores foram distribuídos, em função das unidades de negócio, pelas novas empresas criadas.
É o caso da empresa pública de Produção de Electricidade (PRODEL), “responsável pela exploração, em regime de serviço público, dos centros electroprodutores”, integrando um capital estatutário de 4.997 milhões de dólares (4,4 mil milhões de euros).
Outra das novas empresas públicas constituídas é a Rede Nacional de Transporte de Electricidade (RNT), “dedicada exclusivamente à gestão do sistema, à operação do mercado (comprador único) e à gestão da rede de transporte” e com um capital estatuário de 2.997 milhões de dólares (2,6 mil milhões de euros).
Por último, o mesmo diploma criou a Empresa Nacional de Distribuição de Electricidade (ENDE), dedicada “exclusivamente à comercialização e distribuição de energia eléctrica, no âmbito do sistema eléctrico público”, representando um capital estatuário de 2.918 milhões de dólares (mais de 2,6 mil milhões de euros).
Produção hidroeléctrica
Recorde.se, entretanto, que o Governo chamou uma empresa privada para estudar a potencialidade e viabilidade de novos projectos de produção hidroeléctrica no país.
Segundo o despacho presidencial de 8 de Abril, o Ministério da Energia e Águas foi autorizado a celebrar um Memorando de Entendimento com a empresa Organizações Mário Freitas & Filhos, para a realização em conjunto de estudos preliminares de viabilidade para projectos de infra-estruturas eléctricas nos domínios de Produção, Transporte e Distribuição.
“Tendo em conta a existência em Angola de um potencial hidroeléctrico elevado e a possibilidade de serem consideradas ampliações na capacidade de geração de energia hidroeléctrica”, lê-se no documento.
Além disso, o Governo reconhece neste projecto, ainda sem valor de investimento indicativo, a “necessidade de reabilitar e expandir as redes de distribuição de electricidade das sedes municipais e implementar os projectos de electrificação rural”.
Angola precisa de mais do que duplicar a capacidade de produção de electricidade instalada no país, para cerca de 5.000 MegaWatts (MW), para responder a um crescimento de 12% ao ano no consumo.
Os números foram transmitidos pelo ministro da Energia e Águas, João Baptista Borges, a 11 de Novembro, tendo então admitindo que a actual potência instalada, de 2.162 MW, não é suficiente para responder ao consumo real.
“E estes números não incluem fontes térmicas privadas [geradores] que as pessoas usam para garantir o fornecimento próprio, porque são equipamentos importados e que não estão identificados. Daí que estes 5.000 MW sejam uma estimativa das nossas reais necessidades”, assumiu o ministro.
Na prática, este défice provoca sistemáticos cortes no fornecimento de electricidade à população, face ao aumento do consumo, explicado com o registo de subida das temperaturas no país, além da reduzida taxa de cobertura do território.
O plano de reforço da capacidade instalada em Angola envolve, até 2017, a ampliação da barragem de Cambambe, a construção da barragem de Laúca (ambas na província do Cuanza Norte) e da Central do Ciclo Combinado do Soyo (província do Zaire), permitindo atingir a produção considerada necessária para assegurar os consumos de uma população de 24,3 milhões de pessoas.
Folha 8 com Lusa