A Covid-19 já entrou no vocabulário dos musseques de Luanda, onde os habitantes (que, ao contrário do que o MPLA pensa, também são angolanos) sabem como se proteger, mas temem os efeitos do estado de emergência que os proíbe de biscates e pequenas vendas que lhes garantem a sobrevivência diária. Temem, por isso, que não vão conseguir aprender a viver sem… comer.
Nos bairros de autoconstrução e ruas apertadas, esburacadas e poeirentas amontoam-se milhões de luandenses (que, repetimos, ao contrário do que o MPLA pensa, também são angolanos), informados sobre a melhor maneira de se defenderem do novo coronavírus, mas com poucos meios para o fazer, mais não seja porque a água não chega a todas as casas.
Com a entrada em vigor, daqui a algumas horas, do estado de emergência, que vai restringir a circulação de pessoas durante pelo menos 15 dias, as preocupações crescem. Se não tiverem o que vender, muitos também não vão ter o que comer.
“A nossa preocupação aqui não é bem o coronavírus, nós conseguimos proteger-nos e estar nas nossas casas sem sair, mas o povo daqui depende da comida comprando pelo quilo: a pessoa trabalhou hoje e compra o quilo de arroz hoje. Estar a dar 15 dias à pessoa que depende do quilo, do hoje para amanhã, fica como?”, questiona Paulino Agostinho, morador no Catinton.
Aqui faltam água e desinfectantes para prevenir a epidemia, mas sobretudo a possibilidade, para quem depende de uma subsistência diária de alguns kwanzas, de ficar confinado em casa 15 dias.
“Vamos ficar no quintal? Não tem comida, não tem água, não tem desinfectante, ninguém pode sair para o mercado. Eu não vou aceitar, se tenho fome, ficar trancado em casa”, desafia o morador, sublinhando que “a fome” é que vai complicar, porque “todo mundo depende do biscato”.
O vizinho, José Oliveira, concorda: “Nós podemos ficar em casa 15 dias sem problema nenhum, mas o maior problema é a alimentação, a água. O bidon está a 100 kwanzas (17 cêntimos), vamos fazer o quê? Eu faço biscato, compro umas coisinhas para poder revender. É complicado”.
Maria Sebastião, zungueira, junta-se para dizer que precisa de sair do bairro para “comprar negócio para ‘zungar’” e adquirir “um quilo de arroz”. “Esses 15 dias, nós não vamos aguentar. Não vamos conseguir proteger-nos, porque a fome é demais”, desabafa.
Todos se mostram preocupados com a doença, o que significa que a mensagem transmitida incessantemente nas televisões e rádios angolanas, e pelas autoridades de saúde que se deslocam aos bairros, está a ser bem acolhida.
Incluindo por crianças como Josemar e Valdemar, que repetem o que a mãe lhe ensinou: “Devemos levar as mãos com água, sabão e lixívia”.
O mesmo diz José Manuel, “músico do bairro do Catinton”, junto à entrada caótica e atapetada de lixo do Mercado 1.º de Agosto, atravessada por uma maré incessante e ruidosa de carros que buzinam, “roboteiros” que levam cargas nos cangulos e “zungueiras” que circulam em todas as direcções, trazendo e levando mercadorias.
“Estamos assustados com essa doença, queremos usar as máscaras, lavar as mãos com água e sabão e lixívia”, mas a “água aqui no bairro está difícil”, afirma, enquanto outros transeuntes se juntam à volta, tentando fazer ouvir a voz e as queixas.
A zungueira Ana Garcia também “lava a mão com água e sabão” quando pode, mas não vai conseguir parar de vender: “Não tenho nada na minha casa. Se parar de vir vender as minhas crianças vão morrer com fome”.
Numa pequena loja de costura, Esperança João afadiga-se a despachar o seu novo “best-seller”: máscaras de pano.
“Compramos alguns panos e elásticos para fazer esse tipo de máscaras e facilitar às pessoas que não têm dinheiro para dar 400 kwanzas. Então fizemos máscaras de 100, 200 e 300 kwanzas. Estamos a vender muitas, sobretudo as de 100 kwanzas porque queremos ajudar as pessoas”, salienta.
Mas, amanhã, tudo pode mudar: “Ouvimos na rádio que temos de ficar em casa e estamos muito preocupados. É daqui que conseguimos o pão de cada dia para os nossos filhos. Estamos muito preocupados e tristes, sabemos que a doença está a afectar todo o país, mas ficar em casa… não vejo solução”, desabafa, confiando na “oração”.
Uma das clientes das coloridas máscaras é Sheila, moradora no Povoado, mais conhecido como Areia Branca, bairro insalubre que ganhou atenção mediática devido ao escândalo “Luanda Leaks” quando se soube que os seus habitantes tinham sido vítimas de despejo por causa de um projecto megalómano da empresária Isabel dos Santos que nunca avançou.
Carregando um saco de limões para “juntar com água fervida e fazer um sumo para combater os vírus”, Sheila lamenta-se: “Dizem que temos de usar água e sabão, agora eu pergunto: as pessoas que não têm água, como é que fica? Se ninguém pode sair fora, como é que fica? Vai ser difícil ninguém sair fora nem para vender”.
João Alferes Kingimbo sabe que o “vírus é altamente agressivo” e destaca que devem ser tomados todos os cuidados preventivos para conter a Covid-19.
“Aqui no bairro temos as mínimas condições, temos água canalizada”, diz, mostrando a água, sabão e lixívia com que higieniza as mãos frequentemente.
Kingimbo afirma ainda que as pessoas mais informadas “fazem passar a mensagem às restantes” e sabe que a partir de sexta-feira vai haver “uma paragem total de toda a movimentação”.
Mas acha, como muitos dos outros moradores, que as pessoas tiveram pouco tempo para se prepararem para o estado de emergência, declarado pelo Presidente da República, João Lourenço, na quarta-feira.
“Hoje é quinta-feira, acho que é pouco tempo para as pessoas serem devidamente informadas. Devia-se antecipar a informação para que todos estivessem em condições para estarem preparados para entrar nesse estado de emergência”.
O estado de emergência pressupõe a suspensão parcial de alguns direitos, incluindo de residência, circulação e migração para qualquer parte do território nacional e outras restrições que as autoridades julguem necessárias para se reduzir o risco de contágio por circulação comunitária.
As medidas podem incluir “confinamento compulsivo” em domicílio próprio ou estabelecimento de saúde e interdição das deslocações e permanência na via pública, que não sejam justificadas, por exemplo no exercício de actividades profissionais, assistência médica ou abastecimento de bens.
Entretanto, o Banco Mundial (BM) disponibilizou a Angola 15 milhões de dólares (13,8 milhões de euros) para as acções de combate à pandemia provocada pelo novo coronavírus.
Segundo o representante residente do BM, Oliver Lambert, o financiamento vai permitir a aquisição de equipamentos de laboratório e materiais de segurança e higiene.
Oliver Lambert, citado pela Angop, avançou ainda que decorre um trabalho com os ministérios das Finanças e da Saúde no sentido de se disponibilizar mais financiamento, com vista a dar uma resposta mais abrangente à pandemia da Covid-19.
Angola desenvolve várias acções de sensibilização e reforço das medidas de vigilância epidemiológica nos 32 pontos de entrada espalhados pelo país.
O continente africano registou até hoje 73 mortes devido ao novo coronavírus, ultrapassando os 2.800 casos, em 46 países.
O secretário de Estado para a Saúde Pública de Angola, Franco Mufinda, disse hoje que Angola elevou o número de pessoas em quarentena institucional por causa da Covid-19 de 460 para 526, devido a “denúncias da população”.
A informação foi avançada durante um balanço sobre a pandemia do novo coronavírus no país, em que o governante angolano realçou que as denúncias têm permitido “levar a cumprir de forma compulsiva” a medida.
Relativamente à situação do novo coronavírus no país, são já quatro os casos positivos registados, estando em curso o processamento de sete amostras e outras novas agregadas, fruto do trabalho de campo e da busca activa entre os contactos mantidos por casos suspeitos.
O Governo recebeu hoje das Fundações Alibaba e Jack Ma doações de materiais para o combate à pandemia do novo coronavírus, entre os quais 20.000 testes laboratoriais à Covid-19, informou.
Segundo Franco Mufinda, a doação que chegou hoje ao país incluiu também cerca de 100.000 máscaras e 1.000 fatos de protecção individual de biossegurança de nível III.
Folha 8 com Lusa