Regulamento das ONG é inconstitucional

O Tribunal Constitucional de Angola declarou a inconstitucionalidade orgânica do decreto assinado pelo Presidente José Eduardo dos Santos que aprova o Regulamento das Organizações Não Governamentais (ONG), afirmando que legislar sobre aquela matéria é uma competência exclusiva da Assembleia Nacional.

Segundo o acórdão do Tribunal Constitucional (TC), ao qual o Folha 8 teve acesso, a decisão, rara nestes termos, resulta de um requerimento apresentado pela Ordem dos Advogados de Angola (OAA), pedindo a declaração de inconstitucionalidade abstracta sucessiva do decreto presidencial 74/15, de 24 Março de 2015, que aprova o regulamento das ONG.

O requerimento da OAA, uma das seis entidades em Angola que o podia fazer nestes moldes, invoca, entre outros argumentos, que as “restrições impostas” com o novo regulamento – fortemente criticado anteriormente por aquelas organizações presentes no país – “fazem desaparecer os princípios da auto-organização, autogoverno e autogestão da vida das ONG”.

“Há um excesso de intervenção, controlo e interferência do Estado na vida das ONG, que não permite sequer o exercício das atribuições que foram pensadas pelos particulares”, aponta a OAA, no requerimento.

Argumentos que os juízes conselheiros do TC não chegaram a analisar, por declararem a inconstitucionalidade orgânica do regulamento.

O acórdão, de 5 de Julho, não questiona “a necessidade e até a urgência da adopção, para o caso das ONG, enquanto associações, de um regime legislativo específico”, sublinhando mesmo que o TC “acompanha a necessidade e a urgência de se legislar especificamente” sobre estas organizações.

“O que se questiona é a forma de fazê-lo. Tem de ser por via de uma lei do Poder Legislativo, porque legislar em matéria de liberdades fundamentais (como é o caso da liberdade de associação), e de associações (como é o caso das ONG) é reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia Nacional”, lê-se no acórdão, que mereceu apenas uma declaração de voto, duvidando dos argumentos invocados, do juiz conselheiro Onofre dos Santos.

“Estamos, pois, em presença de um diploma com designação e forma de regulamento, mas com conteúdo material de lei e em matéria que, à luz do princípio de separação de poderes, a Constituição considera ser domínio de reserva absoluta da Assembleia Nacional”, refere o mesmo acórdão.

Consequentemente, o Constitucional declara o decreto presidencial n.º 74/15, de 23 de Março de 2015, “organicamente inconstitucional”, por a matéria tratada ser “do domínio absoluto da competência legislativa da Assembleia Nacional”.

Face a esta decisão, que “consequentemente invalida todo o diploma”, o TC refere ser “inútil” conhecer “da eventual inconstitucionalidade material das normas requeridas” pela OAA e declara a repristinação (recuperar a vigência da lei anteriormente revogada) do decreto 84/02, de 31 de Dezembro de 2002, “que vigorará até que a Assembleia Nacional venha a aprovar legislação específica” sobre as ONG.

No requerimento apresentado pela OAA, aquela entidade refere que o regulamento em causa “limita os fins e actividades” das ONG, “contrariamente ao princípio da abertura dos fins das associações”, consagrado na Constituição angolana.

“Concluiu-se que o Estado trata de forma desconfiada as ONG, assumindo-as como uma espécie de contrapoder fiscalizadora e dilatadora de quaisquer práticas menos corretas junto da comunidade internacional”, refere a Ordem, aludindo igualmente ao “modo discriminatório” com que as organizações internacionais passariam a ser tratadas.

Defende como “insustentável, do ponto de vista Constitucional, fazer subordinar os fins da prossecução da actividade de uma ONG aos expressamente indicados pelo Governo ou executivo”.

No processo de decisão do TC, em representação do autor do diploma em causa, o ministro Chefe da Casa Civil do Presidente da República alegou, em resumo, “fundamentos de natureza política, jurídica, económico-sociais e até de segurança do Estado” para justificar a alteração ao regulamento sobre as actividades das ONG em Angola e de as “conformar” com a Lei das Associações Privadas.

“Garantia de segurança interna, visto que, sob disfarce de voluntariado, muitos países usam ONG como receptáculo e envio de agentes secretos para espionagem”, lê-se na argumentação apresentada, que assegura que o “conteúdo material do princípio de liberdade de associação não é violado em momento algum” pelo decreto presidencial em causa.

“Há o risco de estas instituições serem utilizadas para outros fins, contrários ao interesse das populações. Daí a necessidade de intervenção do Estado, para evitar ocorrência de situações como branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo”, argumenta o Governo.

À medida e por medida

O Tribunal Constitucional declarou inconstitucional o decreto presidencial n.º 74/ 15 de 23 de Março que em vez de regulamentar as organizações não-governamentais (ONG) as amordaçava. Mesmo assim, na sua Declaração de Voto, o juiz conselheiro Onofre dos Santos contesta a decisão.

Assim, segundo Onofre dos Santos, tudo se resolveria com pequenas alterações que, no cômputo, serviriam para manietar a actividade das ONG, mantendo sob controlo apertado do poder executivo o seu trabalho que se pretende livre, imparcial e independente em defesa da sociedade civil.

Para Onofre dos Santos parece não existir grande incompatibilidade nos artigos 7.º e 8.º que obrigam as ONG a um registo junto do Governo, mesmo que em clara violação das liberdades e garantias consagradas na Constituição. Que as ONG fiquem sujeitas (para exercerem a sua actividade) ao arbítrio da vontade administrativa do Governo não seria, portante, um óbice.

Por sua vez o artigo 10.º obriga a uma inscrição no Ministério das Relações Exteriores, dando-lhes um carácter obrigatoriamente estrangeiro e, por isso, passível de interpretações que poderiam até chegar ao terrorismo ou à sujeição de interesses exteriores violadores da estabilidade nacional.

Por outro lado, o artigo 11.º, que obriga à inscrição no Instituto de Promoção e Coordenação de Ajudas às Comunidades (IPROCAC), parece ter sido feito por medida e à medida de ONGs ao serviço do regime, bloqueando actividade de todas as outras.

Noutro contexto mas com igual objectivo, o artigo 15.º sí autoriza ONGs cuja actividade não colida com os conhecidos, ou até desconhecidos, interesses dos órgãos se soberania. Isto significa, desde a nascença da lei, que só podem existir ONGs que aceitem ser correias de transmissão, câmaras de eco, dos princípios que o presidente da República entenda. Por outras palavras, têm de – na prática – deixar de ser organizações não governamentais para passarem a ser organização governamentais travestidas.

E para que nada falhe, o artigo 18.º atribui a supervisão (entenda-se controlo) das ONG a um membro do Governo.

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