Parabéns à minha cidade

A minha cidade, Huambo, completa no dia 21 deste mês 103 anos de existência. A melhor homenagem que posso prestar-lhe é dizer, mais uma vez, que foi lá que tudo começou.

Por Orlando Castro

E numerar os amigos não é viável sem correr o risco de me esquecer de muitos. Então? Então permitam-me que vos fale, recorde, uma instituição. A casa dos Rapazes do Huambo.

Há muitas instituições que, por muito diferente que seja a vontade dos homens que hoje tentam reescrever os factos, fazem parte da nobre História da cidade do Huambo, ex-Nova Lisboa. Uma delas, e felizmente não foi a única, é exactamente a Casa dos Rapazes, fundada em 1955 pelo padre português António Manuel Ferreira, para alojar crianças órfãs ou abandonadas.

Porque o homem sonha e a obra nasce, tudo começou quando Ruivo da Costa passou pela então Nova Lisboa e, em conversa com o Padre Ferreira, lhe disse da sua intenção de criar em Benguela uma instituição de apoio às crianças desprotegidas.

Com o engenho e arte que todos os que conhecerem o “Pai” (assim o consideravam os rapazes) reconhecem, o Padre Ferreira iniciou – com três crianças – no dia 15 de Agosto de 1955 aquela que viria a ser uma emblemática obra de benemerência. Quase como no milagre da multiplicação, começaram a aparecer mais e mais rapazes necessitados. Também as dificuldades logísticas se multiplicaram.

Em entrevista ao jornal “O Planalto”, o Padre Ferreira contou que, “quando se deitavam, as crianças tinham de passar por cima das camas dos outros, pois não havia qualquer espaço entre elas”. No entanto, acrescentava que “com muito trabalho, ajuda das boas almas e mercê de Deus” tudo foi sendo resolvido.

Desde sempre, mesmo considerando os apoios oficiais (como eram os do Governo do Distrito e da Câmara Municipal), sempre foi filosofia basilar do projecto, até mesmo para garantir o futuro dos rapazes, criar fontes de rendimento próprias e autónomas.

Tipografia, carpintaria e marcenaria, serralharia (Escola de Artes e Ofícios), padaria (era conhecida por fabricar o melhor pão da cidade), moagem, alfaiataria, sapataria, lavandaria, barbearia, horticultura, criação de animais e produção de leite… nada faltava neste obra que, também na sua vertente cultural (Banda e conjunto pop) e desportiva (basquetebol, voleibol, futebol etc.), ajudou a fazer homens sãos com mentes sãs.

A Casa dos Rapazes era, aliás, um daqueles exemplos contagiantes de amor à primeira vista relativamente a quem visitasse as suas instalações e, no local, visse como ali se formavam os homens que depois iriam ter o destino de Angola nas suas mãos.

O Padre Ferreira contava, aliás, um exemplo desse amor: “Um dia trouxe aqui um amigo, que se tornou num grande protector, para ouvir o coro dos meus rapazes. Ficou de tal maneira comovido que as lágrimas lhe corriam pelo rosto. Inscreveu-se como benemérito e passou logo a contribuir com quatro mil escudos mensais”. Esse amigo era Mac Gown, dono da Casa Americana.

Entre as muitas figuras de relevo na sociedade angolana de então, e que ajudaram a Casa dos Rapazes, é justo destacar Sá Machado e Pinheiro da Silva. Este último doou à instituição do Padre Ferreira uma das 25 bibliotecas que lhe tinham sido oferecidas, para distribuir por todo a província, pela Fundação Calouste Gulbenkian.

O Padre Ferreira também não esquecia os seus mais directos colaboradores. Na referida entrevista ao “O Planalto”, fez questão de dizer que “só conseguia levar a Cruz ao Calvário graças à ajuda do padre Eduardo da Silva Leitão e dos Irmãos Inocêncio e Vital”.

Contemporâneo do Padre Ferreira foi o Padre Abel, pároco que o substituiu no comando da Igreja do Bairro de S. João.

Sobre o “Pai” da Casa dos Rapazes, o padre Abel não tem dúvidas: “Foi dos melhores entre os melhores na tarefa divina de cumprir a máxima de que quem não vive para servir não serve para viver”.

E acrescenta que “o Padre Ferreira será sempre eterno porque, para além de ter iniciado uma obra que ainda hoje se mantém, vive na memória dos angolanos e dos portugueses, sendo uma figura transversal à sociedade e que dignifica o que de melhor a Igreja fez em Angola”.

Mas não são apenas os contemporâneos do Padre Ferreira que enaltecem a sua obra. Gerações bem mais novas, algumas das quais sentiram na sua formação o espírito da Casa dos Rapazes, até mesmo depois da morte do seu fundador, em 1969, veneram o “Pai”.

Carlos Parreira, hoje exilado em terras próximas das que viram nascer o Padre Ferreira (Lourosa), recorda que tudo o que é, como homem, como pai, como profissional se deve ao que aprendeu na Casa dos Rapazes.

“Eu e o meu irmão fomos ainda candengues para a Casa dos Rapazes. Foi lá que aprendi a viver. Estudei, trabalhei, aprendi música, joguei futebol de salão. Quando saí era homem. Por outras palavras, se não fosse a obra do Padre Ferreira e eu teria sido provavelmente um marginal, um excluído ou – na melhor das hipóteses – um mero sobrevivente”, conta Carlos Parreira, dizendo que os seus filhos, todos já com cursos superiores, “são também eles fruto dos bons ensinamentos, da boa preparação intelectual e profissional que o pai teve o privilégio de ter na Casa dos Rapazes”.

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