Todos os que não se deixam
formatar são para abater

Na próxima terça-feira, dia 14 de Março, Domingos da Cruz, professor do ensino superior em Angola desde 2011, que integra o grupo de activistas angolanos detidos e condenados por suposta e nunca provada tentativa de golpe de Estado e incitação à rebelião, irá apresentar formalmente, através da internet, o relatório sobre “Democracia Académica e Liberdade Científica em Angola”.

Este estudo demonstra, por meio de dados estatísticos, que, em Angola, a liberdade científica tem limitações e restrições intoleráveis. O documento revela, inclusive, que existem professores universitários com medo de publicarem artigos e livros por receio de represálias, falando-se na possibilidade de morte, expulsão do emprego, prisão…

Em declarações ao Esquerda.net, Domingos da Cruz falou sobre o seu trabalho, que “terá um carácter inédito porque, pela primeira vez, se debate esta problemática a partir de dentro”, já que “não se fazem discussões sobre esta matéria no contexto angolano”.

“Enquanto professor, sou permanentemente intimidado”

Segundo Domingos da Cruz, a “fonte de inspiração” deste estudo é baseada “numa experiência pessoal”.
“Enquanto professor, sou permanentemente intimidado. Ao nível das instituições por onde passei aqui em Angola tendem sempre a dizer-nos que temos de ter cuidado com o que ensinamos, que existem na sala estudantes que, na verdade, são agentes do serviço secreto”, afirmou o professor universitário.

“Além disso, existem professores, tal como o relatório assinala, cujo objectivo central é vigiar os outros professores, inclusive reitores. A nível das universidades angolanas, é comum os reitores desempenharem o papel de agentes dos serviços secretos”, acrescentou.

Todo o percurso de Domingos da Cruz, “que não é muito extenso”, foi sempre marcado “por esse tipo de assédio e intimidação”.

“A minha tentativa de desempenhar o papel de professor com rigor e com liberdade académica e científica sempre teve custos, afastaram-me das instituições acusando-me de estar a instigar os estudantes com ideias maléficas”, contou.

Conforme recordou o activista, em 2015, a organização Scholars At Risk, sediada na Universidade de Nova Iorque, colocou Domingos da Cruz na lista dos académicos perseguidos a nível mundial que careciam de protecção internacional, e reconheceu a falta de democracia académica e liberdade científica em Angola.

Após a sua detenção, Domingos da Cruz não chegou, devido a pressões do regime, a regressar à universidade de Luanda, onde exercia funções antes de ser detido.

“O maior empecilho à liberdade académica e científica é político”

No que respeita às principais conclusões do relatório, Domingos da Cruz destacou que “não há discussão a nível interno sobre esta matéria, tanto a nível da academia como da sociedade civil angolana”.

Por outro lado, “não existem condições objectivas para que se possa concretizar este direito fundamental, que é a liberdade académica e científica”, sendo que o professor universitário referiu-se, nomeadamente, ao financiamento à pesquisa, revistas para publicação, editoras que se predisponham a publicar trabalhos académicos.

“O relatório concluiu que o maior empecilho à liberdade académica e científica é político. É essencialmente o regime que inviabiliza a concretização dessa liberdade”, frisou ainda Domingos da Cruz.

O escritor e professor universitário afirma que “muitos professores não tem consciência da importância da liberdade académica e científica” e que “os poucos professores que, a título individual ou porque recebem algum tipo de financiamento a nível internacional, conseguem levar a cabo trabalhos de investigação, têm medo de publicar os resultados das suas pesquisas”.

“Chocou-me encontrar supostos professores universitários que não têm verdadeira noção do que é democracia académica e liberdade científica e da sua importância no exercício da sua profissão”, afirmou Domingos da Cruz, estabelecendo um paralelismo com a situação dos jornalistas: “É como se um jornalista não tivesse noção da importância da liberdade de expressão, com a qual se deve comprometer sempre”.

O activista lembrou que existe um quadro legal nacional e internacional, nomeadamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos no seu artigo 26, que estabelece o direito à democracia académica, no entanto, destacou que, “apesar de haver um quadro constitucional liberal sobre a liberdade criativa no seu artigo 43º, por outro lado, temos o estatuto do investigador que, no seu artigo 13º viola a Constituição”.

“Esse artigo diz claramente que se o investigador tiver acesso a dados confidenciais não pode divulgá-los, e isso é uma autêntica contradição, não só com a Constituição como com a natureza da pesquisa científica. Porque a pesquisa científica deve ser levada à esfera pública, senão não faz sentido”, sublinhou.

Relativamente ao facto de não existir, no seio da comunidade académica, um verdadeiro movimento que exija por parte do regime o respeito pelo direito à democracia académica e liberdade científica, Domingos da Cruz apontou que tal é consequência da ignorância e do medo.

“Regime usa instituições de ensino como campo de batalha política”

O professor universitário reconheceu que a falta de liberdade académica tem tendência a agravar-se com a aproximação do acto eleitoral.

Para Domingos da Cruz, “as eleições no contexto de Angola são um factor que também emperra e inviabiliza a liberdade académica, que está ligada à liberdade de expressão”.

“Um cidadão deve ter o direito de pronunciar-se sobre o resultado das pesquisas. No caso de ser professor, deve ter o direito de leccionar o resultado das pesquisas em plena sala de aulas”, defendeu o activista, alertando que, “em Angola, durante o processo eleitoral, a liberdade de expressão é cada vez mais restringida”.

“Além do mais, o regime normalmente usa todas as instituições de ensino, nos mais variados níveis, até à universidade, como um campo de batalha política. Os reitores, os decanos e os professores comprometidos com o regime instigam os estudantes a votar no partido do poder”, referiu Domingos da Cruz.

“As eleições são um período fértil para os ataques à liberdade científica”, rematou.

Esquerda.net

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