Não basta ser corrupto, é preciso não ter vergonha

O ministro da Defesa Nacional de Angola desloca-se hoje a Malabo como enviado especial de José Eduardo dos Santos, com uma mensagem de apoio a Teodoro Obiang Nguema: “As relações estão muito bem”. Normal. Os velhos amigos são mesmo para isso. É caso para dizer que – pensam eles – ditadores unidos jamais serão vencidos.

A informação, transmitida pelo Ministério da Defesa, não especifica o teor da “mensagem verbal” de José Eduardo dos Santos para o seu velho e querido amigo Teodoro Obiang Nguema, Presidente da Guiné Equatorial, sendo apenas conhecida a boa relação entre os dois chefes de Estado, ambos no poder há mais de 36 anos.

Obiang Nguema já anunciou que vai recandidatar-se à chefia do Estado nas próximas presidenciais, inicialmente previstas para Novembro de 2015, mas que acabaram adiadas para data ainda a definir, embora a imprensa local, oficial, as aponte para Junho próximo. Garantida está a vitória, provavelmente com uma percentagem superior a 90%. Tanto Obiang como Eduardo dos Santos ainda não chegaram aos calcanhares eleitorais do amigo Kim Jong-un.

O Governo da Guiné Equatorial quer reforçar as relações económicas com Angola, nomeadamente na área da banca e dos serviços financeiros, conforme anunciou em Abril, em Luanda, o vice-ministro da Economia, Planeamento e Investimentos Públicos daquele país, Valentin Ela Maye.

O governante, enviado especial do Presidente da Guiné Equatorial, foi então recebido em audiência pelo chefe de Estado angolano, José Eduardo dos Santos.

“As relações estão muito bem. Os dois presidentes têm encontros cada vez que têm oportunidade”, disse Valentin Ela Maye, referindo-se às relações entre os dois países africanos, membros dessa coisa esquisita que dá pelo nome Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

“Abordámos temas sobre o investimento na Guiné Equatorial, como na banca, serviços financeiros e outras áreas de cooperação. Que podem interessar tanto a Angola como à Guiné Equatorial, como a criação, por exemplo, de zonas económicas exclusivas, para poder aproximar as relações entre os dois países”, apontou na altura.

Angola e Guiné Equatorial, dois importantes produtores de petróleo de África, integram igualmente a área do Golfo da Guiné e mantêm relações de cooperação, entre outros, nos domínios da economia, energia e de segurança.

Reconhecimento que tarda

José Eduardo dos Santos está há quase 37 anos no poder. Nunca foi nominalmente eleito. É o segundo dirigente há mais tempo no poder. Mais antigo só Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, da Guiné Equatorial.

A revista norte-americana Forbes considera José Eduardo dos Santos como o segundo pior presidente em África, logo a seguir ao seu homólogo da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Nguema. Essa constatação, que todo o mundo vê, não impediu – por exemplo – que Angola seja membro do Conselho de Segurança da ONU.

Em artigo publicado na revista portuguesa Visão, João Dias Miguel descreve a Guiné Equatorial como um pequeno país corrupto e torturador, mas rico em petróleo, onde nunca se falou nem falará português.

Em 1968 um obscuro funcionário público, que falhara três vezes o exame de admissão à carreira, subia ao poder, nas primeiras, e até agora únicas, eleições livres alguma vez realizadas na Guiné Equatorial, então um acidente da história da colónia recém independente de Espanha. Francis Macias Nguema, um marxista que, mesmo assim, não hesitava em chamar a Hitler o “salvador de África”, era um homem doente, perseguido por pesadelos, que tinha por hábito fumar marijuana, beber iboga (com efeitos semelhantes aos do LSD) e jantar sozinho com fantasmas, com quem conversava longamente. Ficou conhecido como “o milagre único”.

Reinou durante onze anos, tendo distribuído cargos pelos seus familiares. Entre estes estava um sobrinho, o tenente-coronel Teodoro Obiang, governador militar da Ilha de Bioko e da capital, Malabo, bem como responsável pela famosa prisão Playa Negra, onde eram encarcerados os opositores políticos. Aqui, um dos divertimentos eram as “danças de sábado à noite”, em que um prisioneiro era obrigado a dançar à volta da fogueira durante horas, enquanto cantava laudas ao ditador.

Quando se cansava, era espancado com barras de metal incandescente, aquecidas nas brasas. Segundo o historiador Randall Fegley, o actual presidente da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang, dirigia, pessoalmente, muitos dos homicídios neste centro de tortura. Mais. Teodoro era para Macias “aquilo que Heinrich Himmler era para Adolfo Hitler”.

O regime era então conhecido como o “Dachau de África” e não foi sem satisfação que o resto do mundo assistiu ao golpe de Estado que Obiang liderou contra o seu tio, em 1979. Macias foi julgado e executado – mas por “apenas” 157 assassínios que não implicavam nenhum dos golpistas. Obiang foi recebido de braços abertos pela comunidade internacional, disposta a esquecer o passado em prol de uma promessa de abertura. O rei Juan Carlos de Espanha jantou em Malabo e, em 1981, o país recebeu até a visita de João Paulo II.

Mas a Guiné Equatorial continuou a aparecer nos relatórios das organizações internacionais como um regime pária e ditatorial. Até meados dos anos 90, era tido como um “narco Estado”. O general brigadeiro Obiang foi “reeleito”, em 1982, 1989, 1996, 2002 e 2009, sempre com percentagens superiores a 97% dos votos – em 2002, um círculo eleitoral conseguiu até atribuir-lhe 103 por cento (em Angola já vimos disso).

Os velhos modos de fazer política não mudaram e Obiang nomeou familiares directos para os cargos mais importantes – filhos das suas cinco mulheres e familiares próximos ocupam, até hoje, ministérios, direcções-gerais, rádios, cargos militares e grandes empresas, apropriando-se da riqueza do Estado. Ao mesmo tempo, silencia opositores políticos, recorrendo à tortura e a execuções.

Com a descoberta de petróleo, em 1996, a cleptocrática oligarquia familiar torna-se numa das dinastias mais ricas do mundo. O país começa a ser conhecido como o “Kuwait de África” e as grandes petrolíferas mundiais – ExxonMobil, Total, Repsol – instalam-se lá.

Obiang é, hoje, um dos dez chefes de Estado mais ricos do planeta – e o ditador há mais tempo no poder. Em 2011, ele tinha, só nos EUA, mais de 700 milhões de dólares em contas pessoais e o seu filho favorito fazia planos para comprar um iate por uns meros 360 milhões, o dobro do orçamento do país para a Educação. A pena de morte está suspensa – condição exigida para que a Guiné Equatorial pudesse entrar na CPLP. Mas os opositores políticos continuam a ser presos e torturados e nenhum mecanismo impede as execuções extrajudiciais. O dinheiro, esse, continua a jorrar.

Poucas histórias ilustram esta fantástica riqueza como a de “Teodorin” Obiang, o diminutivo pelo qual é conhecido o ex-ministro das Florestas, vice-presidente e herdeiro do regime. A sua riqueza é conhecida por causa dos processos que lhe foram interpostos na justiça dos EUA, de França e de Espanha, por lavagem de dinheiro e corrupção.

Trata-se de um playboy excêntrico, que gosta de se apresentar como “príncipe”, e de fazer uma vida consentânea, entre Paris e os EUA, no seu jacto, que usa como se de um táxi se tratasse, e na qual, segundo a Foreign Policy, não faltam festas com acompanhantes de luxo, drogas e até tigres. Na Cidade Luz, é dono de uma mansão de seis andares, na avenue Foch, uma das mais caras da cidade, e tem automóveis avaliados em mais de 40 milhões de euros.

Na Califórnia, é proprietário de uma mansão em Malibu e tem como vizinhos Mel Gibson e Britney Spears. Mas esta não é uma mansão qualquer, mesmo para os padrões locais: são 1 400 m2 de construção, com oito casas de banho e um número igual de lareiras, piscina com vista para o Pacífico, campo de ténis e de golfe – e há 36 carros de luxo na garagem (sete Ferraris, cinco Bentley, quatro Rolls Royce’s; dois Maybach…). O príncipe faz questão de pôr todo o pessoal (jardineiros, seguranças, criados) em fila, quando chega e quando parte deste seu “palácio”.

O seu antigo motorista, Benito Gialcone, conta que ele pedia os carros de forma a condizerem com a indumentária: “Estou de sapatos azuis, traz-me o Rolls azul”). Certa vez, no Hermitage, fê-lo regressar de táxi à mansão, pois, quando verificou que as pessoas paravam para admirar o seu Bugatti Veyron, quis que fosse buscar o segundo, para que os visitantes do museu soubessem que tinha dois. Trata-se, diz um diplomata americano à Foreign Policy, “de um idiota imprudente e instável”. Mas um com o qual os EUA – e Portugal – terão de lidar, num futuro próximo.

Prisões arbitrárias, execuções extrajudiciais, tortura, ausência de liberdade de expressão e de associação. Ausência de tribunais independentes e de Estado de direito, corrupção oficial generalizada. Eleições fraudulentas, restrições à existência de partidos políticos. Violência e discriminação contra crianças, mulheres, gays e pessoas com HIV. Estas são, para o Departamento de Estado dos EUA, algumas das características da Guiné Equatorial.

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