As crises que nos levaram ao fraccionismo de Neto

O golpe de Estado do 25 de Abril de 1974 em Portugal que pôs fim a mais de 40 anos de ditadura salazarista, a chamada “Revolução dos Cravos”, salvou o MPLA de uma gravíssima crise (na qual já estava encalhado), que teria sem dúvida alguma desembocado num fraccionismo devastador e irreversível. Fraccionismo houve, mas só devastador, não foi irreversível.

Logo a seguir a esse importante acontecimento da Dipanda (independência), recebido e sentido em Angola como luz ténue, mas sublime, no fim dum tenebroso túnel, passada a euforia que o sentimento de liberdade sempre traz com o advento de reviravoltas políticas radicais, Luanda, a próspera capital duma colónia em pleno desenvolvimento económico, viu as suas clivagens sociais (oposição Baixa/Musseques, ou Branco/Preto) a abrir costuras inquietantes no tecido demográfico da cidade, composto por cidadãos a viver a duas velocidades, a dois tempos e em dois patamares, separados pelo fosso cada vez maior que separa o bem-estar da miséria.

Mesmo assim, ainda houve tempo para fazer uma festa em nome da alegria causada pela próxima chegada da Liberdade, anunciada em fanfarra. E foi esse sentir que se expressou nas manifestações de satisfação dos colonos, na comunidade social em geral e nas ruas de Luanda, no dia 1º de Maio desse ano.

Sol de pouca dura, pois já nessa festa a celebrar o Dia do Trabalhador, foram para o ar palavras de ordem, vindas de estratos sociais mal definidos, com milhares de africanos a desfilar aos brados algo contraditórios de «Abaixo o colonialista» e «Viva Spínola!» (homem arreigado ao neocolonialismo), ou «Viva a Independência!» e «Autonomia sim! Independência, NÃO!».

Acresce a esse sentimento diferenciado no seio dos cidadãos luandenses, na maioria dos casos inconciliável, a diferença entre MPLA, UNITA e FNLA. E a mais notada e mais notável de todas essas diferenças era sem dúvida o contraste entre o poderio militar da FNLA e a insignificante força bélica do MPLA, e também, numa menor proporção, a da UNITA.

Essa era a situação que augurava, sem que ainda se falasse disso abertamente, a ideia de conquistar o poder político unilateralmente pelas armas. Ideia que o MPLA “ajudou” a reforçar nos centros urbanos, essencialmente em Luanda, com a criação de grupos de agitação pró-MPLA.

Esses grupos – as Comissões Populares de Bairro (CPB), os Comités de Acção, as Associações de Estudante Universitários de Luanda (AEUL)s, os Sindicatos, as Comissões de Trabalhadores, e mesmo alguns partidos não armados – sabiam até que ponto o MPLA estava dividido e apelavam à unidade e reconciliação. Mas já nessa altura, no MPLA, reconciliação significava renunciar a ideias divergentes e anuir às teses oficiais da cúpula do movimento e a unidade só era entendida a partir do momento em que não fizesse perigar a liderança do chefe, o Dr. Agostinho Neto.

E o entusiasmo militante da generalidade dos membros desses grupos levava-os a proferir uma boa quantidade de slogans altamente depreciativos das outras facções ou correntes de opinião do MPLA, como “fantoches”, “agentes do imperialismo e do neocolonialismo” “reaccionários”, etc. (Mabeko-Tali, “O MPLA perante si próprio”, volume II, pág53, Nzila, 2001).

Tudo isso começou por uma mobilização operada pelos CPB em Luanda logo a seguir ao 25 de Abril, que acabou por se estender a todo o país sob formas diferenciadas, de comités de trabalhadores, “Frentes Populares de Quimbos” nas zonas rurais, e outras formas não necessariamente ligadas entre si, mas todas por obra de uma juventude englobando estudantes de vários níveis e principalmente o sub-proletariado, que constituiu o verdadeiro nervo das actividades dos CPB (sobretudo em operações de comando contra certos sectores da população branca durantes os períodos mais conturbados), obedecendo sempre a uma mesma preocupação de defesa activa dos interesses do MPLA (Mabeko-Tali, opus idem).

Dessa frenética dinâmica militante nasceram os diversos “Comités de Acção” como bases de apoio à 1ª Região Político-Militar do MPLA. De início formados em torno duma personalidade marcante, mas de forma dispersa, como foi o caso dos Comités “Pacavira” e “Escórcio” ou “do 4 de Fevereiro”, todos eles operavam na sua zona residencial em nome do MPLA e de Agostinho Neto.

Mais tarde começaram a aparecer novos comités em nome de uma determinada ideologia e radicalizaram-se por obra de uma nova geração de activistas, como foi o caso dos “Comités Amílcar Cabral (CAC)”, os “Comités Henda”, “Ginga” e outros ( Mabeko-Tali, opus ibidem, pág 52).

Estes novos órgãos de apoio ao MPLA impuseram rapidamente um verdadeiro debate ideológico, não só no seu seio, como dentro do próprio MPLA, a propósito de problemas do momento, debate que atingiu o seu ponto culminante na abordagem do chamado problema do “Poder Popular” que trataremos mais adiante. Para já convém sobretudo notar que a diversidade de origens, ideologias e concepções de estratégias dos diferentes Comités, contribuíram para a grande complexidade do problema, na medida em que se juntavam numa luta comum em defesa duma mesma organização política, o MPLA, sensibilidades tão díspares como “maoistas”, “trotskistas”, “albanesas” ou “pró-soviéticas” e “de direita”.

O Poder Popular

Foram, em todo o caso, estes comités de esquerda e extrema-esquerda que deram o impulso necessário à criação das estruturas do Poder Popular, que veio a ser um ponto de polémica no seio do MPLA, assim como um autêntico pomo de discórdia entre este último e os dois outros movimentos, UNITA e FNLA. Talvez um pouco porque, na concepção dos seus promotores, o Poder Popular impunha-se sem nuances, como sendo uma escolha sem meio-termo entre a “verdadeira independência”, que colocaria “o povo no poder” num sistema de autogestão, e uma independência neocolonial defensora de privilégios e excluindo o povo da direcção do Estado (Mabeko-Tali ,opus idem,pág55).

Fácil é de entender que, mesmo que fosse possível chegar a uma opção consensual dentro do MPLA a propósito desta alternativa, o que estava muito longe de ser evidente, ao ser alargada a discussão aos dois outros movimentos, UNITA e FNLA, e na medida em que o que estava em jogo era a luta dos três movimentos pela hegemonia em defesa de concepções por assim dizer antagónicas, de rompante se violavam todas as fronteiras do realismo para entrar no domínio da utopia e as possibilidades de chegar a um acordo tornavam-se irremediavelmente nulas.

Exactamente como aconteceu

Passando por cima da polémica que se levantou entre os tenores dos três movimentos de libertação nacional a operar nessa altura em Luanda, é de notar que a adesão da direcção do MPLA às palavras de ordem do Poder Popular não foi imediata, nem entusiasta, nem tão-pouco unânime. Assim, quando os CAC lançaram em 1974 a sua palavra de ordem “Lutemos pela consolidação do Poder Popular”, nada havia em Luanda para apoiar essa ideia e a direcção do MPLA mantinha-se muda sobre o assunto, numa prudente reserva.

Quando a primeira delegação oficial chefiada por Lúcio Lara chegou a Luanda, no dia 8 de Novembro de 1974, ao que parece esse dirigente não ficou nada entusiasmado com as piruetas verbais dos promotores do Poder Popular.

Entretanto, uma delegação dos “Comités” deslocara-se a Lusaka a fim de contactar Agostinho Neto, para obter da sua parte uma declaração clara sobre essa temática. Mas o Dr. Neto deu uma resposta em meias-tintas, um sim sem convicção, que mesmo assim chegou para tranquilizar os simpatizantes do Poder Popular.

Pouco tempo depois de o presidente do MPLA ter chegado a Luanda, a 5 de Fevereiro de 1975, mais precisamente, no seu primeiro comício que teve lugar no Bairro Golfe no dia 12 de Fevereiro seguinte, a declaração tão esperada sobre o Poder Popular saiu então da sua boca como que a reconhecer o peso político importante que os Comités tinham nessa altura, textualmente nos seguintes termos:«(…) mesmo que seja uma pequena elite negra a governar o país, sem ligação nenhuma com a base, que é a base trabalhadora, isto seria o mesmo que se praticou durante o colonialismo. Por isso, nos pronunciamos pelo Poder Popular e para que haja, de facto, tranquilidade». (Mabeko Tali, opus idem, pág.57-58)».

Tranquilidade!…

Em boa verdade, Neto não podia dizer não, pois seria comprometer a sua estratégia de, digamos, defesa civil em nome do MPLA, ou seja, defesa dos militantes, do aparelho e dos bens do MPLA e de mais ninguém. Nessa altura era uma urgência.

De qualquer maneira, as eleições para a liderança dos órgãos do Poder Popular realizaram-se, muito graças ao impulso dado pelo novo “menino bonito” do MPLA, Nito Alves, mau grado a frouxa adesão da direcção, comprovada pelas reacções negativas que não tardaram a se manifestar.

Na realidade, Nito Alves, nas vestes de ministro da Administração Interna, foi mais tarde claramente responsabilizado pelo “crime” de ter levado a bom termo as eleições populares em Luanda.

Segundo a sua própria versão, a certo passo (11ª Tese), o camarada Saydi Mingas disse: “As eleições em Luanda (dos órgãos do Poder Popular) foram prematuras e não são um acontecimento de dimensão nacional, é um acontecimento só dizendo respeito a Luanda”, e por isso, continuou ele, “deveria ter sido suprimido o texto sobre a resolução geral, a referência às eleições das Comissões Populares de bairro de Luanda”.

Por seu lado, ainda segundo Nito Alves, o membro do Comité Central, Onambwé, mandou para o ar a seguinte boca: «Nós não temos o direito de repetir erros que os outros já repetiram». E depois de dizer que as Comissões Populares de Bairro de Luanda foram “um fenómeno de agitação trazida a Angola por “esquerdistas” portugueses e que o Poder Popular em Angola mais se parecia com o Poder Popular nos bairros de Lisboa do que o Poder Popular que ele conhecia, chegou mesmo a pedir a suspensão, de imediato, da implantação dos órgãos de Poder Popular.

Mas mesmo assim as eleições realizaram-se e, quando Onambwé se viu derrotado, ó que diabo!, o homem foi mais flexível, advogando o princípio segundo o qual “doravante deveria presidir as eleições do Poder Popular a província que mais produzisse. Sim, seria essa a realizar as “suas” eleições”. Bonita pirueta política.

Comentário de Nito Alves: «É o princípio da estranha e inédita emulação socialista. O Poder Popular aparece-nos deste modo, como prémio revolucionário à província que apresentar maior índice de produção. (…) Desde quando o poder político se implanta a partir da emulação socialista? Esta tese por ser nova só pode ser explicada pelo seu criador, o camarada Onambwé».

De facto, a crise já estava instalada no seio do MPLA.

E então, Nito Alves, indignado, afirma: «Não vou comentar todo este chorrilho de argumentações aberrantes. Mas, como é possível que dirigentes que defenderam a necessidade da participação das Comissões Populares de Bairro na época da luta contra os fantoches do imperialismo, sustentem. após a vitória popular, estas teses de inépcia (as de Onambwé)? Como é que se grita todos os dias, VIVA O PODER POPULAR, e se defendem estas posições? Na luta anti-imperialista, no sentido mais amplo, apelou-se para o Poder Popular que vai até ao ponto de se pedir medidas de suspensão (até quando?) do processo eleitoral? Algo vai mal no MPLA, é a conclusão a tirar».

Depois destes desabafos azedos e outras arranhadelas a dignitários do Comité Central, o futuro “bode expiatório” da intelligentzia do MPLA desabafa: «Tudo o que pessoalmente pensei sobre o Poder Popular em Angola disse-o detalhadamente, enquanto (então) ministro da Administração Interna, numa audiência com o camarada Presidente. Estávamos de acordo que o Poder Popular em Angola era uma aquisição histórica revolucionária das massas sob a direcção do MPLA.»

Bonita frase a consagrar uma pretensa comunhão de ideias. Mas na prática, mesmo com os empurrões de Agostinho Neto, a Revolução era uma ova estéril!

E Nito Alves, cada vez mais indignado, tira a sua “bíblia” do bolso e explica (11ª Tese):

«Em Cuba, o Poder Popular aparece com o Partido Comunista Cubano no poder; os sovietes, na Rússia, marcam a sua aparição na história muito antes da revolução de Outubro, portanto contra o Czar, ou seja em 1905. Nesta altura o primeiro órgão do poder revolucionário era constituído por 151 deputados, e a sua maioria tinha de 21 a 25 anos! Ora em Angola, o Poder Popular irrompe com toda a sua força não com o MPLA no poder, mas com uma coligação governamental, cuja correlação de forças era favorável às forças contra-revolucionárias. Basta isto para provar a consistência do nosso ponto de vista – é no estudo da história dos sovietes onde devemos buscar a teoria do Poder Popular, sem subestimar outras experiências como a cubana e a vietnamita. Nos seus primeiros tempos, os sovietes na Rússia surgem como simples direcção do movimento reivindicativo da época. Evidentemente, Angola de 1976 não é a Rússia de 1905 ou de 1917. Mas o argumento não é consistente porque a ser assim, nada vale o estudo da História Universal».

Outro ponto que alterou o seu humor foi terem dito que o Poder Popular era fenómeno local. E vemo-lo então a desfazer esse argumento, a seu ver falacioso:

«Outro argumento, frequentemente utilizado é que as Comissões Populares de Bairro só existem em Luanda! Para responder diremos muito simplesmente: na Rússia o Poder Popular nasce numa única localidade, a cidade de Yvanovo, onde, pela primeira vez, operários da industria têxtil se haviam agitado em greve: na Cuba socialista, como se sabe, o Poder Popular nasce na província de Matanzas; no Vietnam, os órgãos do Poder Popular nascem na região de Viet Bae», subentendido: será que esses órgãos locais não vingaram para se transformarem no motor da revolta nacional desses países?»

E Nito Alves prossegue:

«Com o Poder Popular em Angola, a nossa obrigação era fazer como os bolcheviques – corrigir e prevenir os excessos, os desvios e ver nas Comissões Populares de bairro de Luanda a iniciativa, o caminho seguro descortinado pelas próprias massas no sentido da luta pela construção do socialismo. O MPLA tem de demonstrar capacidade de dirigir esta força que não pode ser dispersada se queremos avançar com ritmos bem cadenciados. Mas o Poder Popular é ainda a teoria e a prática do Estado e transição. Assim sendo, assume grande importância o problema de “aprender a governar o país”!».

Enfim, a sua réplica esvai-se num lamento: «É doloroso ver hoje alguns dos nossos quadros dirigentes manifestarem uma mórbida desconfiança no Poder Popular, desconfiança que em alguns se transforma em ódio às massas, (há preparativos de repressão reservados para o ano de 1977) em tudo semelhantes ao que os fantoches holdenistas e savimbistas nutriam em relação ao Poder Popular ao qual tinham um ódio de morte! (…)Se um dos crimes de que me acusam é o de ter lutado, na prática, para as eleições dos órgãos do Poder Popular, deste crime então me pronuncio categoricamente e condenem-me como quiserem».

Esta dualidade de pensamento era o problema real enfrentado por Neto. E foi a necessidade que criou o inevitável gesto de anuência ao Poder Popular. E, ao dar-lhe a sua adesão, por ser uma necessidade premente, o MPLA sabia muito bem que seria grande a dificuldade para controlar uma organização heteróclita que não tinha sido criada de raiz no seio do Movimento. Mas tinha que ser assim, pois o problema fundamental da batalha em redor da ideia do Poder Popular era o domínio da base social, isso sem esquecer que, em caso de conflito armado, a mobilização operada por esse meio era um trunfo na consolidação e ampliação da base de recrutamento de combatentes urbanos contra os outros dois movimentos. Isto, está claro, sem a anuência formal da esmagadora maioria dos “pragmatistas” de serviço.

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