Angola, mais um ano de (in)dependência

A caminho do 40º aniversário do 11 de Novembro, é hora de fazermos um balanço deste já não pequeno percurso. Normalmente, tenho dificuldades de iniciar este meu processo de revisão e reflexão, começando apenas a 11 de Novembro de 1975. Sinto-me sempre impulsionado e, mesmo sem querer, revejo-me no ano anterior, em 25 de Abril de 1974.

Por José Patrocínio (*)

P ossivelmente porque fora essa fase, do 25 de Abril ao 11 de Novembro, um momento de importantes, profundas e marcantes mudanças. Foi, acredito, nesta fase onde ficou marcado, de maneira clara, o futuro do país e o nosso actual momento. Foi nessa altura, onde as peças se foram movimentando rapidamente no tabuleiro político, onde foram-se contornando os interesses em jogo, ficando nítidos os espaços de cada um, seus sonhos e posições.

Do de 25 de Abril ao 11 de Novembro: da Liberdade à guerra

É incrível que, em pouco mais de um ano, se tenha podido viver tão intensamente momentos tão distintos, realmente e/ou aparentemente contraditórios, que me marcam até hoje, fazendo (ou querendo fazer) entender o presente, o processo e, fazendo-me mantendo firme a querer continuar a acreditar que uma outra Angola é possível.

Nessa altura, realmente parecia que se entendia e assim se demarcavam, os que eram da esquerda e os que eram da direita, seja nos cidadãos, seja nos movimentos de libertação ou mesmo nos partidos que aí surgiram (ou voltaram a reencarnar-se, como a FUA, de acordo s Sócrates Dáskalos).

Lembro-me que naquele dia, 25 de Abril, nos meus 11 anos, o meu pai chegara do trabalho, à hora de almoço, ligeiramente aparentando alguma inquietação, alguma expectativa, dizendo para a minha mãe, “parece que foi hoje, parece que foi hoje”.

Eu e o meu irmão mais velho, o Luís Carlos, seguimo-lo até à garagem que ele (o meu pai) teve o devido cuidado em voltar a fechar a porta grande logo a seguir a termos entrado, e enfiámo-nos fechados dentro do carro. O meu pai ligou a rádio e ficámos ali em silêncio. Eu, não fazia a menor ideia do que se estava a passar mas de pronto apercebi-me que deveria ficar calado.

Nem me lembro do que o locutor tenha dito durante o noticiário, mas vi o rosto do meu pai a sorrir e o meu pai só conseguia dizer “foi hoje, foi hoje” e pôs-se de novo a caminho de casa, e nós a segui-lo com o ar de quem acompanha algo importante, logo depois a termos de novo fechado a porta da garagem. Já na cozinha, o meu pai dizia para a minha mãe “foi hoje mas ainda temos que ter calma, vou ter mesmo que me certificar. Precisamos de saber como as coisas estão a andar lá (referia-se à tuga) e vermos como reage o pessoal do regime aqui”.

Foi pela primeira vez que palavras como “regime”, “cá” e “lá” começaram realmente a fazer parte, não só do meu vocabulário, como na minha forma de ser e de pensar. Afinal havia um regime e afinal havia um lá e um cá!

Foi a partir de então que comecei a perceber que havia coisas que mudaram, que estavam mudando, que precisariam de mudar. Afinal, coisas diferentes podíamos fazer. Afinal, “agora estávamos livres”. Em todos os sentidos. Lembro-me também, que com outros amigos da mesma idade, começámos a sair mais vezes do bairro, a pé, à boleia, para irmos para o Mercado (o local no centro da cidade onde às tardes muitos jovens se juntavam).

Aquele sentimento que não consigo explicar, fazia-nos sentir como os mais velhos, os adultos, eramos livres. Andávamos aos gritos, sem sabermos por quê, atirando “o povo unido nunca mais será vencido, nunca mais será vencido”. E ao perceber que podíamos dizer isso, apenas porque afinal antes não se o podia fazer, dava uma enorme satisfação. Eu nem sabia que antes não se podia gritar “povo unido nunca mais será vencido”. Nem que havia “povo”, nesse sentido, nesse valor! Obvio que conhecia a palavra “povo” mas não com aquele teor que passou a carregar, a ficar-lhe intrínseco.

Depois veio uma outra série de novas experiências. Principalmente na vida no liceu. Começaram a criar-se comissões de estudantes. Havia listas e eleições. Recolhas de assinaturas, cartazes, palavras de ordem, demonstrações, discussões com a direcção da escola, as greves. O mundo era outro. Os próprios professores começavam a diferenciar-se nos seus métodos, aqueles que continuavam com os velhos métodos de professor sabichão, o chefe, aos mais liberais, permitindo-nos ter opiniões e discussões.

Foi o verdadeiro sentimento de liberdade e da importância de participar. Ainda hoje quando entendo liberdade tenho como referência, esse tempo, do valor de liberdade. Quando falo e me refiro a liberdade, tem precisamente referência a essa forma de sentir e de estar.

Como o meu pai era sindicalista, acompanhei muito de perto também esse processo das greves. Lembro-me também da primeira manifestação em que participei, com estudantes do liceu e da escola comercial e industrial, de solidariedade com o jornalista “António Cardoso” que se encontrava raptado em Luanda pelas forças da FNLA. “Queremos a libertação do camarada António Cardoso” era o que gritávamos, desde o liceu, até à “Câmara”, actual administração municipal.

Depois começaram a sobrepor-se as cores partidárias (dos movimentos principalmente) . Muitos amigos deixaram de se falar. Com esta sobreposição das cores políticas, começaram os discursos a se tornar mais agressivos. As pessoas começavam a ser mais da cor política do que de tudo o resto.

Lembro-me depois, que foi sol de pouca dura. Foi então que também comecei a dar conta dos que partem e dos que ficam. Tive pela primeira vez, a percepção da perda. Fiquei sem amigos. Um a um, em pouco tempo, partiam. Instaurava-se o medo e a incerteza.

As armas e as fardas passaram a ser comuns nas nossas casas, pelo menos, na minha. O meu irmão apronta-se para ir para o CIR. Tinha apenas 4 anos a mais que eu. Tinha por isso entre os 15 e os 16 anos. Várias vezes fugiu de casa e várias vezes o meu pai foi buscá-lo. Até que basou mesmo.

Começaram a pairar as ameaças, as perseguições, os raptos, os assassinatos. Do nosso lado da trincheira, do MPLA, o principal medo era a BJR. Começou a circular a informação, que hoje há quem desminta, de que se comiam corações e outros órgãos humanos. Se na realidade essas informações eram falsas, posso agora dizer que foi nessa altura, então, que pude ter contacto com a manipulação da informação e da mídia.

Nunca mais voltei a dormir em casa, e cada noite, uma casa estranha nos recebia. Começaram os confrontos. Havia ligeiras tréguas até que novos confrontos iniciavam e o mapa geo-político se definiu antes da independência.

É também nessa altura que tomo contacto pela primeira vez, com informações que relacionam cargos públicos com desvios de dinheiros. Fomos para a rua, enquanto estudantes, reclamar pelos 100 mil contos. Gritávamos “queremos os cem mil contos Abrigada”. Penso que Samuel Abrigada era o então ministro da saúde do governo de transição. Se a informação era falsa ou não, o que é certo é que tive a possibilidade, aos meus 12 anos, de saber que o poder poderia estar relacionado com o roubo, a trafulhice.

Começou-se a falar de alianças. Estas estavam claras. Começam, num lado, no nosso, onde me encontrava, no MPLA, a chegar os consultores militares cubanos, fala-se da aliança da FNLA com o então Congo Kinshasa de Mobutu e mercenários e da UNITA com a África do Sul. O mapa começa a mudar.

Para mim, ser da esquerda parecia-me ser muito claro. Pretendia a verdadeira independência, contra a neo-colonização, contra o capitalismo e o imperialismo yankee. Defendia o Poder Popular e a aliança operário-camponesa e era claramente pela nacionalização da terra, da banca, dos recursos naturais, dos seguros, dos transportes. Defendia a participação popular, através das comissões de moradores, de trabalhadores e de estudantes. A saúde e a educação deveriam ser públicas e gratuitas.

Percebi, nessa altura, que também essas posições, ao grupo a que pertencia, permitia ter poder para tudo e mais alguma coisa. Lembro-me por exemplo, que em certa altura, o meu irmão, apareceu em casa com um carrão. Era um Fiat amarelo claro, desses modelos (na altura) modernos tipo desportivo ou sport, sei lá. O meu irmão estava, como já disse, nas FAPLA e prestava serviço na frente do Balombo. O que ele me disse, na altura, é que “recuperara” a viatura, na frente de combate, em que a mesma se encontrava abandonada. Realmente, era uma sorte, poder recuperar uma viatura daquelas com chaves e tudo. O meu irmão tinha começado a conduzir muito cedo, e não era raro que, às escondidas, tirava o carro do meu pai para passear com os amigos. O meu irmão tinha o nome de guerra de “Che Guevara”. Agora ele teria o seu próprio carro. Uns dias depois, numa tarde, tocam à campainha e sou eu quem vou abrir o portão. Estava um senhor magro, branco, estreito à frente, acompanhado por mais uns outros dois ou três negros, todos à civil.

Mais tarde, o estreito, alto e branco disse que os demais eram da polícia e queriam saber onde estava o dono daquela viatura. Eu, inocentemente, esclareci que era o meu irmão e que o mesmo não se encontrava. Ouvi então, que iriam levar a viatura porque teria sido furtada. Não percebi nada na altura. Já não me recordo como, mas o que é certo é que levaram a dita viatura. Não tinham nenhum documento, nenhum mandato, nenhum processo contra o meu irmão, nada. Apenas assim.

O meu pai ficou furioso com o meu irmão, houve gritos, enfim, o meu irmão argumentou “pai, aquele homem tem ligações com a BJR, denunciou os nossos e agora ele vai ver o que lhe vai acontecer, ainda por cima ele quer levar o carro para Portugal”. O que é certo é que nunca mais me lembro de ver aquele homem estreito, alto e branco pelas ruas, nem a viatura Fiat, amarela clara, tipo desportiva ou sport.

Muito rapidamente, entendo afinal, que ser-se de esquerda ou de direita, tinha obrigatoriamente que se colocar de um dos lados do mundo. A internacionalização do conflito, coloca a “esquerda” do lado da URSS, Cuba, Bloco de Leste, Vietnam do Sul e por aí a fora. Já a “direita”, se coloca do lado dos Estados Unidos, da África do Sul, de países africanos como o Congo Kinshasa e assim também. Afinal o mundo está dividido e em luta permanente.

Foi, penso, na madrugada de 3 de Novembro de 1975, que percebi, de alguma forma, o que seria ser deslocado. É verdade que tinha assistido à partida em massa dos meus amigos com destino ao “lá”, à tuga, algum tempo antes, mas agora poderia vivenciar. Nessa madrugada, uma enorme coluna de viaturas, de Benguela e do Lobito, dirigiu-se a Novo Redondo, Porto Amboim e finalmente Luanda.

A nossa família e mais algumas, ficaram alojadas numa clínica abandonada no Miramar. O Centro de Tratamento Neuro-Psicológico do Miramar. Comecei então a perceber também sobre o que seria a luta pela comida. Enfrentei pela primeira vez as enormes bichas para poder adquirir alguns produtos da tropa portuguesa no Jumbo. Eram latarias de todo o tipo, de sardinhas, patês, até de queijo fundido. Numa determinada altura desconfiava-se que as mesmas eram a causa de muita coceira entre nós e pessoas amigas. O peixe espada ficou famoso como o “cinturão das FAPLA” e o arroz era o alimento diário. Vivenciei as primeiras restrições alimentares e os primeiros cartões de abastecimento.

Realmente não havia ainda os cartões de abastecimento das famosas lojas do povo que vieram mais tarde, mas, nós os deslocados de Benguela, tínhamos um cartão para abastecermos alguns bens, como frangos e ovos, numa comissão dos deslocados que ficava na casa de um companheiro que também tinha fugido da Catumbela e que era para aquelas zonas do Bairro Azul.

Chegou então o 11 de Novembro aos sons dos bombardeamentos! Os sussurros sempre ameaçadores de que seria, quase todos os dias, o dia em que a FNLA e a UNITA entrariam em Luanda. Sentia-se uma mistura de pânico e de expectativa.

Ouviu-se, na voz do Agostinho Neto, que “o bureau político do comité central do MPLA declara perante a África e o mundo, a independência de Angola”. Conhecemos a bandeira e o hino. “Angola avante, Revolução, pelo Poder Popular, Pátria Unida, Liberdade, um só Povo, uma só Nação”!

De 75 a 91: A República “Popular”

Algum tempo depois, regressei ao Lobito. Os cubanos tinham entrado em força e os “inimigos” a Norte e a Sul estavam a “recuar”.

Já no Lobito e de volta ao liceu, alguma coisa continuava, mas já nada era o mesmo. Constituímos à mesma as comissões de estudantes, discutíamos os assuntos com a direcção da escola, organizavam-se as campanhas voluntárias para descarregar navios, distribuir leite e vacinas nos bairros, ir colher o café e o abacaxi. Fazíamos alfabetização. Mas tudo já era diferente. Apenas eramos “nós”, Cinicamente e fingidamente apenas “nós”. Eramos os vencedores e os inimigos estavam vencidos e escorraçados. E todos nós eramos “nós”. Começa a haver as chefias, afinal os mais “nós”. Começa a haver as imposições e os silêncios. O voluntarismo termina à força do obrigatório. Surgem os sábados vermelhos, obrigatórios. As acusações e condenações dos que não participavam. Imediatamente passaram a ser rotulados como inimigos ou amigos dos inimigos. Começaram a ser responsabilizados e punidos. No liceu apanhavam faltas injustificadas e poderiam reprovar de ano.

Mas as coisas foram mudando também em todas as áreas. Surgiram os Comissários provinciais, municipais e comunais. As greves eram impedidas, porque significavam alianças com o inimigo. Os bens nas lojas começam definitivamente a escassear e surgem as famosas lojas do povo e os seus cartões de abastecimento. Todos teríamos direito a receber igual. As bichas começaram a fazer parte da nossa rotina. Mas este igual, não era tão igual. para além dos esquemas, dos amiguismos e dos direitos dos mais “nós”, surgem diferenciações nas lojas. Para além das lojas do povo, passam a surgir as lojas dos dirigentes. Afinal os mais “nós”.

Mas foram ainda surgindo outras lojas mais específicas, como as dos estudantes (no Huambo dirigia-se aos estudantes do ensino superior), as das noivas e as dos cooperantes. Afinal precisávamos da cooperação e os estrangeiros não poderiam suportar as nossas crises. Mais tarde, bastante mais tarde, surgem as lojas do “abastecimento complementar” dirigidas aos “dirigentes”, aos “responsáveis”, aos “técnicos superiores” e aos “técnicos médios”. Nestas lojas, estávamos designados por grupos, A, B e C.

Por mês tínhamos um valor limite (no meu caso eram 3500 Kz, grupo A) que poderíamos ir gastando como queríamos com alguns produtos considerados de “luxo” como electrodomésticos e bebidas importadas. Eu, às vezes tinha que juntar vários meses para poder comprar algo mais caro, como a minha primeira arca frigorífica. Também fui começando a entender a candonga e o mercado negro. Por exemplo, com uma grade de cerveja Heineken que eu comprava nessa loja, poderia vender cá fora e comprava um bilhete de passagem, na TAAG, de ida e volta a Lisboa.

Mas para além desta distinção entre pessoas, havia as flagrantes diferenças geográficas. As lojas complementares, por exemplo, durante muito tempo só existiam na nossa capital, Luanda. Só em Luanda foi instalada uma rede de supermercados, que já nem me lembro do nome, que vendia produtos brasileiros, o famoso kissuco que se dizia que as mulheres aproveitavam para colocar nas faces e ficarem rosadas. Em Luanda também surgem outras lojas específicas, como a dos trabalhadores do petróleo.

O país fica descaradamente e flagrantemente estratificado em grupos, em hierarquias, e em regiões. Luanda, passou a ser o centro de tudo e de toda a atenção.

Para além desta hierarquização e estratificação da sociedade, os poderes e a discricionariedade foram tornando-se reais. Afinal precisávamos (“nós”) de nos defender do inimigo (os “outros”). É assim que os Comissários passam a ser os todo poderosos e os quem decidem sobre o que deve e não deve ser feito. Os Comissários decidem sobre os bens e as cervejas que os noivos poderiam receber, decidem sobre os tribunais e tudo mais. Afinal o país precisava de se defender. Todos e tudo era mobilizado. Havia a ODP e depois as BPV. Eu jurei bandeira no Huambo, em acto junto à Feira.

Embora tenha parecido um avanço, no campo militar, do “nós”, rapidamente passa a haver um real recuo. O país passa a viver em ilhas e o “nós” restringe-se fundamentalmente às cidades, capitais de províncias e de municípios. O recolher obrigatório impôs-se. Em algumas cidades, como no Huambo, o recolher era às 20 horas. Na maioria das demais cidades, o recolher era às 24 horas. Afinal o Huambo era a terra dos “outros” ocupada por “nós”.

As liberdades, por decisões dos Comissários, podiam ser reprimidas ao seu belo prazer. Não falo sequer das liberdades políticas, mas aquelas mesmo individuais. Por exemplo o Kundi Paiama perseguia os rastas e as meninas que usavam bikini nas praias. A sua tropa era aterrorizadora.

Já a nível das liberdades de pensamento, de opinião e políticas, sofrem pesado golpe. Vem o 27 de Maio de 77. Começam as perseguições, as prisões, a tortura e os fuzilamentos. Ninguém estava seguro porque qualquer um alguém poderia acusar-te de seres fraccionista, apenas porque queria ficar com a tua casa, o teu carro ou a tua esposa.

A guerra, num determinado período, também assumiu outros contornos. Para além dos confrontos entre militares, começou a haver os ataques a alvos civis, as famosas emboscadas em que a Canjala era famosa e os ataques a alvos económicos. Lembro-me numa madrugada acordar com os clarões das explosões da esfera de gás, dos depósitos de gasolina no porto do Lobito e da companhia dos cimentos, aqui no Lobito. Lembro-me ainda das bombas no Huambo, nos mercados do Canhe e dos fuzilamentos públicos dos “bombistas”.

As rusgas começaram a tirar o sono à maioria dos jovens (que não fossem filhos dos mais “nós”). A qualquer hora, principalmente durante as madrugadas, os militares invadiam as nossas casas em busca de jovens em idade militar, para se inserirem nas forças armadas. As rusgas também se faziam nas ruas e muitos jovens desapareceram sem que nunca as suas famílias soubessem para onde teriam sido levados. Muitos, ainda adolescentes, com idade inferior aos 18 anos, foram também levados à força. Foi a altura que começo, começamos, a assistir a um novo grande êxodo de pessoas para fora do país. Começou o medo pelas ST.

Durante este período, é sempre importante recordar dois processos que marcaram a minha, a nossa vida. O famoso processo dos mercenários, em que o procurador era Rui Monteiro que na altura pedia a pena máxima e a dos “kamanguistas”.

Por outro lado, toda esta fase é acompanhada pela dependência exclusiva do petróleo. Não é difícil de entender. A Cabinda Gulf, mesmo sendo dos yankees, é protegida.

Foi também o período dos grandes processos de nacionalização. A terra passou imediatamente a ser propriedade do estado, a banca, os seguros, as grandes empresas de produção (agrícola ou industrial), os transportes, os portos, companhias ferroviárias, marítimas e aéreas, enfim, até a maioria do circuito de comércio era estatal. A saúde e a educação era exclusivamente pública e gratuita. Aparentemente não se sofria de desemprego e de fome.

Ainda neste período, morre Agostinho Neto e sobe José Eduardo dos Santos. Um dos mais jovens presidentes de todos os tempos a nível do planeta.

No campo militar, se na realidade tinha havido um reavivar da UNITA, os grandes combates se desenrolaram também contra o exército sul-africano. Em 1980 é reconhecida a independência do Zimbabwe e em 1990 acontece a independência da Namíbia. a 21 de Março.

Lembrar ainda que, foi neste período, não importa bem quando, que se pretende precisamente transformar o MPLA (não me lembro se já era nessa altura “partido do trabalho”) no Estado-Nação. Há um grande movimento de recrutamento de membros. Toda a gente, indiscriminadamente, é convidada (forçada) a ser membro do “partido”. Realmente não disse de forma acidental, que foi “forçada” a forma de recrutamento de membros. Ser do “partido” era importante e indispensável. Era com este “cartão de membro” que garantia o acesso às “vantagens” e à escapadela das “desvantagens”.

O pior insulto e ameaça, era chamar ou designar alguém de “kwatcha”. Então, para se evitar receber tal insulto, ameaça ou possível perseguição, era melhor ser-se do “partido”. Para as bolsas de estudo, muito importantes nessa época de guerra, era importante ter-se o dito “cartãozinho”. Para se beneficiar de apartamentos e outros bens, como viaturas, etc., era milagroso ter-se o dito “cartãozito”. Portanto, é óbvio que todos os malandrecos, malandrões ou dessa estirpe, entraram de imediato, sem pestanejar, nas fileiras do “partido”. Os assustados, inocentes ou não, também foram de carreirinha, fazer parte do rebanho.

Lembro-me que numa altura, durante esse processo, num encontro de esclarecimento desse processo, dirigia a mesa o Dr. Panhanha, então médico veterinário, professor e vice director da Faculdade de Ciências Agrárias. E militante activo do MPLA, obviamente. O que mais me marcou foi a resposta que ele deu ao meu colega Carlos Figueiredo, o Figas. Este questionou se seria livre a possibilidade de qualquer um querer, caso concluísse que afinal o “partido” não era o que pensava, sair do “partido”.

O Panhanha inicialmente começou a dar voltas, esclarecendo que os militantes que desvirtuassem a linha do “partido” seriam expulsos, e muitos etc, mas confrontado com a insistência do meu colega e amigo, ele respondeu “ah claro, mas depois não se arrependam quando vierem os benefícios para os militantes do partido” (possivelmente não foram bem estas as palavras, mas era bem esta a sua lógica!).

Foi quando decidi não continuar com uma relação político-partidária directa com o MPLA. Apenas queria continuar a defender os princípios que eu, relacionava com ele, mas de forma independente. Nunca imaginei esperar receber benefícios por ser militante. E isso era muito visível. Por exemplo nessa altura, as lojas no Huambo estavam quase todas fechadas, ou “às moscas”. As bichas eram feitas durante a noite, com pedras a marcar os lugares, já que havia recolher obrigatório. No entanto, uma carrinha distribuía o pão nas casas dos membros do comité provincial do “partido”.

Ainda nessa fase, senti de novo o peso das perdas. O meu irmão, o Luís Carlos, na altura piloto de MI8, morria por falta de sangue, depois de ter levado um tiro quando se deslocava do Huambo para Benguela.

Não poderia de deixar de fazer referência, a nível internacional que se vivia muito ainda o sonho do pan-africanismo e do movimento dos não-alinhados, durante todo este período.

De Bicesse ao Luena: A Paz do Vencedor

Em 1991, voltamos a assistir a mudanças interessantes e importantes. Há acordos entre os beligerantes, o governo (MPLA) e a UNITA. Resulta na revisão da constituição e em muita legislação ordinária de forma a enquadrar-se e a encaixar-se no novo figurino. Estas mudanças referem-se essencialmente a nível político e económico. Coincidentemente ou não, também deparamos com enormes mudanças no bloco socialista.

No campo político, há uma reviravolta do “socialismo democrático” para a “democracia multipartidária”. Surgem as leis dos partidos políticos, das associações, da liberdade de reunião e de manifestação, de acesso à informação, e por aí de carreirinho. Há apertos de mão e preparam-se eleições.

Enterrou-se (tentou-se?) a ditadura do proletariado para plantar-se a ditadura do capital! Fala-se então do mercado livre e atrevem-se as privatizações.

No entanto é importante lembrar, que pouco antes, assinavam-se os acordos relativos à saída das tropas cubanas de Angola, a 10 de Janeiro de 1989.

Já nos preparativos para as eleições, era demais perceptível que não existe um clima de confiança. Tal como em todos os acordos que conhecemos em Angola, mesmo nos de preparação do 11 de Novembro, apenas foi reconhecida a participação das alas militarizadas do processo angolano. Em momento algum, foram envolvidos os demais pensadores e cidadãos que não estivessem de um dos lados dos conflitos.

Neste clima ocorrem as eleições. O MPLA ganha na primeira volta e José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi devem disputar a presidência numa presumível segunda volta. A tensão aumenta, a desconfiança e o discurso de fraude aumenta e daí aos confrontos foi apenas um pequeno passo. A guerra volta a instalar-se no país. Com outra intensidade, é claro. A guerra volta às importantes cidades e capitais de província, incluindo Luanda.

Segundo consta, tudo começou com um ataque das forças do governo contra apoiantes da UNITA e da FNLA, em finais de Outubro de 1992, denominado por “massacre de Halloween.” Há ainda a tentativa de Lusaka, em 1994.

Voltamos a confrontarmo-nos com uma enorme onda de deslocados e a assistência humanitária instala-se definitivamente em todo o país.

Nesta altura, começo a trabalhar neste processo a nível do governo da província. Ajudo a criar-se a Unidade Técnica de Apoio aos Deslocados. Mais tarde ingresso na ADRA e posteriormente conjuntamente com outros amigos, criamos a OKUTIUKA – Acção Para a Vida (APAV), no Caimbambo.

Vivo pela primeira vez a experiência de, poder participar na construção da Paz sem fazer parte de numa das partes em conflito. Antes pelo contrário, faço parte de aproximações.

Um importante episódio que me marcou bastante para perceber os contornos da nossa guerra e dos interesses que possivelmente envolvia, ocorreu comigo no Chongoroi. Como resposta à enorme pressão que fazíamos junto das agências humanitárias internacionais, incluindo das Nações Unidas, conseguiu-se que o próprio governo aceitasse que se desenvolvesse um plano de apoio humanitário para as populações que viviam nas áreas da UNITA, naquele município. Foi assim que, conjuntamente com os nossos companheiros do Chongoroi, o tio Correia e o Vasco, de mota, deslocámo-nos várias vezes às zonas da UNITA para manter os contactos, levantarmos os dados e prepararmos o apoio, a nível alimentar, de saúde, educação, agrícola, etc.

Conseguimos também mobilizar de forma concreta, o Programa Alimentar Mundial (famoso PAM), a CRS e muitas outras organizações. Este trabalho era acompanhado pelos efectivos da UNAVEN.

Numa das nossas deslocações, eu ia numa das nossas motorizadas com o tio Correia e acompanhados por uma viatura da UNAVEN, encontrámos a população muito excitada, gritos, choros. Os responsáveis da UNITA estavam com cara de poucos amigos. Como sempre, fomos encaminhados para o jango onde normalmente decorriam os nossos encontros. O pessoal da UNITA começou a demonstrar o seu nervosismo. As vozes começaram a alterar-se e a certa altura deram ordem para que os representantes da UNAVEN abandonassem o local. Eram acusados de ser cúmplices das “manobras do MPLA”. Ficámos a saber que as tropas do governo tinham atacado durante a noite e a madrugada, aquela base da UNITA, tendo havido mortos e feridos e roubo de muitas cabeças de gado.

Eu e o meu colega fomos “convidados a permanecer”. Eu, realmente, sentia-me bastante preocupado e com medo do que pudesse acontecer connosco ali sozinhos. Mais tarde, fui percebendo que não havia de sinais de nervosismo em relação a nós “O problema não é convosco. Fiquem à vontade.” Mesmo com estas palavras, eu não estava nada à vontade.

Tentámos ficar o fingidamente mais relaxados possível e continuámos a fazer o nosso trabalho de rotina (o que sempre fazíamos nessas visitas). O tio Correia foi então conversar com o jovem que era o delegado da saúde. Normalmente para saber se havia algum problema, se havia stock de medicamentos, etc.

Depois da conversa, quando o meu colega chegou-se a mim, como sempre, lhe perguntei por novidades. Foi aí que ele me informou que o delegado da saúde lhe tinha pedido para levar um recado para uma certa pessoa, na sede do município. Era para lhe dizer que o seu gado também tinha sido levado pela tropa do governo no ataque daquela noite. Foi aí que fiquei surpreendido. Afinal quem era essa pessoa que vivia na sede e tinha o seu gado na zona da UNITA?

Era nada mais nada menos do que o secretário da JMPLA. Como o secretário da JMPLA tinha relações e até o seu gado, sob protecção da UNITA?

Pude então, ainda mais, perceber que a nossa guerra já nada tinha a ver com confrontos ideológicos. Membros do MPLA eram também da UNITA, matava-se gente para roubar bois e por aí!

Houve, a nível internacional, o desaparecimento do espírito do pan-africanismo e é engolido pelo tempo o movimento dos não-alinhados.

As alianças vão se mudando também. O governo começa a avançar muito mais o seu namoro com o ocidente, nomeadamente os Estados Unidos e também Israel. Estas novas alianças vão ser imprescindíveis para o desfecho que conhecemos deste tão prolongado conflito.

A caminhada galopante do populismo e do capitalismo selvagem

A 22 de Fevereiro de 2002, Jonas Savimbi é morto no Leste de Angola. Em Luena, poucos meses depois, a 4 de Abril, assinam-se os acordos entre o governo e a UNITA.

O petróleo está em alta e aumenta-se a sua produção. Os cofres do estado vivem de boa saúde. Começa-se a investir grandemente em infra-estruturas e desminagem. Preparam-se as eleições legislativas. A UNITA vem debilitada das matas.

As eleições legislativas vêm a ocorrer em 2008 com a promessa de as presidenciais terem lugar no ano seguinte. O presidente da república, aproveitando-se deste novo formato da assembleia nacional e do figurino político (e económico) nacional, decide fazer a revisão da constituição em 2010, onde, o que mais se salienta, é a acumulação de poderes na figura do presidente da república, a dependência dos órgãos de soberania e sua submissão à presidência e a eliminação das eleições presidenciais. Por outro lado, há um aparece aumento das referências aos direitos.

Ainda em 2010, coincide a realização do CAN em Angola com o processo constituinte. Em 2012 ocorrem já as eleições neste novo formato, consideradas como “atípicas”.

Continuam a verificar-se os problemas já característicos das nossas eleições. Estas foram marcadas pelo braço de ferro com a nomeação de Suzana Inglês para dirigir a CNE. Depois de muita luta, tentativas de manifestação, detenções e violência policial, finalmente Suzana é substituída no cargo.

A banca é assaltada num único golpe. Os interesses públicos passam a ser utilizados como forma eficaz de se satisfazer os interesses privados e de enriquecer a nova burguesia. Afinal os mais “nós” do antigamente. Vira celebre a frase de José Eduardo dos Santos sobre a necessidade premente de “acumulação primitiva do capital”. Lembramos muitas outras, não menos célebres como “a democracia foi-nos imposta” e “a pobreza já a encontrei”.

Com o petróleo em alta, um investimento em grande e acelerado de infra-estruturas e o calar das armas, estavam juntos os condimentos para tornar Angola no novo El Dorado.

Começa o assalto brutal às zonas urbanas e rurais. Com a justificativa de ocupações ilegais e do interesse do Estado, começamos a dar conta e a sentir o peso do “kamartelo”. São desalojados à força milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares de cidadãos em toda a extensão do território nacional.

Enquanto que no norte de África, sopram os ventos de primavera que mais tarde se viram em verdadeiros tsunamis do deserto, aumenta, no nosso país, a já não pouca adoração à figura do presidente da república.

As manifestações, embora ténues e ainda meio que inibidas, não deixam de sentir o peso da repressão. Cassule e Kamulingue são raptados e finalmente considerados assassinados. Mata-se Ganga e julga-se Rafael Marques.

Reprime-se flagrantemente a liberdade de imprensa e os órgãos de comunicação social são realmente meros veículos de propaganda da elite ao entorno do presidente. A TPA2 passa para as mãos de um dos seus filhos. O outro fica à frente do Fundo Soberano para gerir os milhões provenientes do petróleo. Já a princesa chega aos holofotes da fama como sendo uma das mulheres mais ricas do mundo.

Os escândalos económicos e financeiros começam a arrebentar como cogumelos e o sistema judiciário fica definitivamente desmascarado de ser o tentáculo da presidência. Para além de escândalos como o do BESA e dos milhões de Bento Cangamba na Europa, dos milhões envolvidos na compra em Espanha de material para a polícia, vêm à luz as informações de tráfico de drogas, tráfico humano e de escravos.

O petróleo despenca-se e o El Dorado afunda-se que nem o Titanic. As dívidas aumentam, os investimentos evaporam-se. Portugueses, brasileiros e cubanos pegam nas malas e voltam a zarpar.

A repressão aumenta e as manifestações também. Marcos Mavungo é condenado a 6 anos de cadeia e Arão Tempo continua em liberdade controlada.

Presidente recorre à China e a outros países para contrair mais empréstimos. Prepara-se para visitar a Rússia, Enquanto isso continua a investir na defesa com compra de mais e novo equipamento.

Banco Mundial e FMI visitam Angola e declaram que o governo precisa de fazer mais cortes. Enquanto isso, as grandes empresas petrolíferas ameaçam abandonar o país, caso não se retirem as medidas impostas por Angola que encarece o custo de produção.

As polémicas leis de registo eleitoral, do trabalho e da prisão preventiva, são aprovadas para dar o toque final ao assalto.

No entanto, Angola vai assumindo uma grande e maior visibilidade. Não como o El Dorado do antigamente, mas como uma rainha da repressão e corrupção. O morro do Sumi e Kalupeteka vêm à ribalta.

A oposição consegue unir-se nas jornadas parlamentares e milhares aderem às redes de solidariedade contra as prisões dos activistas. E a procissão ainda vai no átrio.

(*) Activista dos direitos humanos e coordenador da organização não-governamental OMUNGA.

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One Thought to “Angola, mais um ano de (in)dependência”

  1. Pedro da costa

    Sinto me congratulado com este texto pois é uma verdadeira pincelada relativamente ,e no que concerne, Angola de ontem e de hoje ,pois tudo quanto temos estado a viver tem os seus antecedentes,no fundo é uma sombra da imagem do passado, é óbvio que o temos de mudar o quadro urgentemente para evitarmos ter um futuro sobpena de ser idêntico o de hoje

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